A fundação da Mocha: litígio e batalha nos tribunais
Por Reginaldo Miranda Em: 19/02/2018, às 18H33
[Reginaldo Miranda]
A história da vila da Mocha é bastante representativa do período histórico em que vivia o Piauí e do seu modelo de ocupação territorial, nascida que fora em meio a cruenta disputa entre posseiros e sesmeiros. Primeiro chegou a Igreja, depois a ereção em vila e governança pelos oficiais da câmara, seguida da justiça e arrecadação do fisco.
Nesse tempo de comemoração tricentenária é sempre bom discutir a ora primeira. Dia desses escrevi sobre a fundação do lugar, agora desejo desenvolver o assunto reconstituindo o dilema enfrentado pelos pioneiros para formação do patrimônio da municipalidade nascente.
Data de 1693, o primeiro passo para a fundação da freguesia, quando pela vez primeira entrou em desobriga pelo novo território o padre Miguel de Carvalho, da freguesia do Rodelas. Foi então que recebeu dos moradores dos vales ribeirinhos o compromisso de engajamento religioso e de assumirem as despesas com edificação da igreja e manutenção do reverendo cura. Quatro anos depois retorna aquele vigário em comitiva, trazendo autorização para fundar a freguesia que fora denominada Nossa Senhora da Vitória. Assim, em 11 de janeiro de 1697, reunindo os moradores que haviam se comprometido com o novo empreendimento, todos indicados na Pastoral do Reverendo Bispo D. Fr. Francisco de Lima, deliberaram sobre o local para edificar a igreja e iniciar a povoação. Deu-se a reunião em casa de Antônio Soares Touguia, na fazenda Tranqueira, vale do rio Canindé. Por votação democrática, foi assentado para edificar a igreja no brejo chamado o Mocha, para a parte do tabuleiro que se acha pegado à Passagem do Jatobá para a parte do Canindé, consignando-se para roças e passais do Reverendo Cura e Igreja todo o brejo do sobredito riacho da Mocha, conforme já anotamos em detalhes.
Em seguida, por dezoito dias ininterruptos, folgando apenas aos domingos, abrem a clareira, providenciam material e constroem uma capela simples mas decente, com paredes de taipa e cobertura de pindoba, medindo 24 palmos de comprido por 12 de largo. O altar feito de tábua com 9 palmos de comprido e 4 de largura. Em 2 de março do mesmo ano foi a mesma benzida em solenidade a que também se deu posse ao novo vigário, Pe. Tomé de Carvalho e Silva, primo do padre Miguel. No mesmo ato foi também benzido um quadro que de redor da capela consignou com marcos de pedra para sepultura de defuntos e donde se haveria de edificar a nova igreja, a qual tinha cem passos de comprido e sessenta de largo.
Estava, assim, fundada uma nova paróquia no Sertão de Dentro e iniciada uma povoação que seria a futura vila da Mocha, depois cidade de Oeiras.
Mas toda história de pioneirismo tem seus percalços. Na contramão dessa história houve quem não gostasse desse surto de progresso e, mesmo, se opusesse à referida fundação. Foi o fazendeiro Julião Afonso Serra, que, desde 13 de outubro de 1676 recebera em sesmaria aquelas terras, em excessiva concessão feita pelo governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida. Estava ele entre os agraciados com quarenta léguas de sesmarias nesses sertões, para dividirem em partes iguais, por serem sócios nas primeiras entradas, juntamente com seu irmão Domingos Afonso Sertão e outra dupla de irmãos, Francisco Dias d’Ávila e Bernardo Pereira Gago, estes da Casa da Torre.
Pois bem, logo depois da ereção da capela e fundação do lugar, rebela-se o indicado sesmeiro. Em ato de força, Domingos Afonso Serra, sobrinho daquele, em esquipar de cavalos com seus capangas invade a nascente povoação, desacata o vigário e de tocha à mão faz arder em chamas os ranchos que estavam sendo levantados para a fábrica da igreja. Todavia, não se deixa intimidar o jovem vigário, reconstruindo-os com maior grandeza. Então, ajuíza o sesmeiro na Relação da Bahia uma ação de reintegração de posse contra o vigário, que depois da citação é devidamente contestada. Inicia-se, assim, a maior contenda jurídica que existiu no Sertão de Dentro, sobrevivendo aos primitivos litigantes e demorando mais de cinquenta anos para ser definitivamente dirimida.
Em 1699, para reforçar sua posição o padre agrega alguns moradores ao lugar, que os ajudam na construção do templo maior, de pedras e saibros, edificado ao lado do primeiro, onde fora marcado na cerimônia de fundação.
Em 23 de novembro de 1700, foi o cura colado na matriz por ato do rei D. Pero II e assegurado o recebimento de côngrua pela Rel Fazenda. Foi-lhe também assegurada a mercê das referidas terras para explorá-la a título de passais, como já haviam decidido os moradores na aludida reunião de fundação do lugar. No entanto, por sentença prolatada em 1701, na Relação da Bahia e confirmada posteriormente em grau de recurso, foi autorizada a reintegração na posse do sesmeiro Julião Afonso Serra.
Porém, o pároco resiste pleiteando a el-rei que, em 1704 envia o desembargador Carlos de Azeredo Leite, para apurar os excessos e executar alvará para repartição das terras das aldeias dos índios e para passais do vigário. Foi então por esse magistrado concedido ao pároco da freguesia de N. Sra. da Vitória, o direito aos passais na fazenda da Passagem, com três léguas de comprido e quase outras tantas de largo.
Contra esse ato intentou novamente o rico sesmeiro, mostrando o engano da concessão e requerendo a execução da sentença, de que foi embargada pelo vigário. Por esse tempo morre Julião Afonso Serra, deixando aquelas terras em testamento ao sobrinho Domingos Jorge Afonso, que o sucede no domínio da terra e na contenda jurídica. Ele mesmo assim se reporta a essa sucessão testamentária:
“... e tocando ao suplicante aquela parte da dita sesmaria, que ficou pertencendo ao seu tio Julião Afonso Serra, junto ao rio Canindé e sítio chamado da Passagem, termo e freguesia da vila da Mocha e N. Sra. da Vitória, ficou o suplicante por si e pelo dito seu tio Julião Afonso Serra, possuindo essas terras, e povoando-as por si e seus colonos, a quem também as dava de arrendamento, como verdadeiro e legítimo senhor delas, para as desfrutarem, e nelas criarem gados”.
Em seguida relembra a fundação da Mocha e introdução do vigário nas mesmas terras, relatando todo o histórico da querela:
“e por se introduzir o vigário da dita vila e freguesia a fazer arrendamento em seu próprio nome, das mesmas terras a cobrar dos colonos, e condutores as rendas dela, os mandou o suplicante para lhes pagarem as rendas dos sítios, que ocupavam pertencentes ao suplicante, obrigando-os a responder perante o Desembargador Provedor-mor da Fazenda Real, de que o suplicante era Almoxarife e o dito ministro seu juiz privativo e competente na cidade da Bahia, como se mostra do teor da petição fl. 2, e mandou pelo despacho a fl. 5, a que os citados moradores no Piauhy e vila da Mocha opuseram, e também os oficiais da câmara da dita vila a fl. 6, e o dito vigário da Igreja e freguesia de N. Sra. da Vitória Thomé de Carvalho e Silva com os outros embargos à fl. 12, continuados à fl. 30, e recebidos pelo despacho à fl. 32 e verso, assim demonstrarem uns e outros embargantes que o suplicante não era legítimo senhor e possuidor das sobreditas terras pelas razões referidas em uns e outros embargos, sem embargo dos quais a favor do suplicante se proferiu a sentença à fl. 48, que passou em cousa julgada. E requerendo o suplicante a sua execução ainda nela foi embargada a dita sentença pelo sobredito vigário com embargos ou exceção de incompetência de jurisdição, sem embargo do que se proferiu também a favor do suplicante a sobredita sentença à fl. 60 e verso, e assim ficou aquela sentença de fl. 48 mais indubitavelmente passando em cousa julgada, e a sua determinação sendo muito conforme a outra sentença que a favor dos antecessores do suplicante e a respeito da mesma fazenda se proferiu no ano de 1701, a fl. 63, confirmada pela outra da Relação da Bahia à fl. 65, e sendo também a determinação da mesma sentença fl. 48, conforme a outra sentença a fl. 67, proferida na Casa da Suplicação em 26 de março de 1718, além de se fundar a dita sentença fl. 48, proferida contra o dito vigário nas ordens de V. Maj., a fl. 44 e 69 para se dever a dita sentença dar a sua execução contra todos os réus nela condenados”.
Nesse breve relatório o capitão Domingos Jorge Afonso noticia os passos da luta judicial com o vigário e já menciona um terceiro elemento que torna mais complexa a contenda, o ingresso no feito também dos oficiais da câmara. É que que desde 26 de dezembro de 1717, com a instalação oficial da Vila da Mocha e posse dos oficiais do senado da câmara, com função executiva, legislativa e aspectos judiciários, passaram estes também a ter interesse na causa, opondo-se tanto ao sesmeiro quanto ao vigário. Entendiam esses últimos que a vila não poderia sobreviver economicamente sem administrar o patrimônio local e arrecadar os impostos que já eram cobrados pelo vigário a título de passal e os queria o sesmeiro a título de renda. Para bem esclarecer a questão, ouçamos mais uma vez o relato do aludido sesmeiro:
“Porém, depois de proferida a dita sentença fl. 48, e ter passado em cousa julgada para iludir a sua determinação e encontrar a sua execução recorreram os mesmos RR condenados a V. Maj., sem fazerem menção da sobredita causa e sentenças que nela se proferiu contra eles e a favor do suplicante pedindo obrepticia e sub-reptissimamente que lhes fizesse mercê das ditas terras, que o dito vigário dizia serem suas conforme as ordens de V. Maj. de 23 de novembro de 1700 inserta à fl. 40, se aplicassem ao Conselho da Vila da Mocha para logradouro público dos moradores dela em espaço de três léguas de comprido, e quase outras tantas de largo, somente a fim de impedir e se não observar a determinação da sentença proferida contra o dito vigário e oficiais da câmara da vila da Mocha”,
Por fim, conclui seu relatório suplicando ao rei que faça cumprir a decisão judicial prolatada a seu favor e já transitada em julgado, pois as concessões feitas aos opositores foram fruto de ação obrepticia e sub-reptíssima, isto é, com narração de circunstâncias falsas e ocultação de direitos:
“E porque não é justo nem conforme o direito que aquilo que se determinou e julgou por sentença proferida com conhecimento de causa, e que passou em cousa julgada a favor do suplicante fique sem a sua devida execução contra a intenção de V. Maj., que não é visto querer prejudicar ao direito de 3º, sem embargo disso o ouvidor do Piauhy e comarca da Mocha, sem mandar cumprir a dita sentença na forma da sua determinação mandou pelo seu despacho à fl. 71 que a sentença se cumprisse sem prejuízo da Resolução de V. Maj., de 20 de dezembro de 1735.
‘Para V. Maj., que em atenção do referido lhe faça mercê mandar que a dita sentença proferida em juízo contencioso com conhecimento de causa a favor do suplicante se dê a devida execução na forma dela contra os RR condenados sem embargo de qualquer ordem ou provisão obrepticia e sub-repticiamente impetradas. ERM” (AHU. ACL. CU 016. Cx. 3. D. 169).
Em face desse pleito do capitão Domingos Jorge Afonso, o rei solicita parecer ao ouvidor Custódio Correia de Matos, devendo ele ouvir os oficiais da câmara. Então, a fim de compor a situação, opina o ouvidor que Sua Majestade desse ao referido proprietário os vinte mil reis a título de passal que anteriormente mandara dar ao vigário, na suposição de que a terra fosse sua. Esse parecer é acatado com o esclarecimento de que esse pagamento não é sobre a terra ou sítio que seja preciso ao uso contínuo do povo ou uso particular da câmara, e sim sobre roças e propriedades que a dita câmara tira foros e rendimentos, que só serve a uso particular dos arrendatários e foreiros (AHU. ACL. CU 016. Cx. 3. D. 228).
Retornando um pouco antes e para abordar outros aspectos da municipalidade, em 1723, depois de nomeado para o cargo de ouvidor-geral da Vila da Mocha, cuja ouvidoria ia instalar, o bacharel Antônio Marques Cardoso solicita concessão de perdão aos criminosos de sua jurisdição na forma que se concedeu aos de São Paulo quando ali se iniciou a justiça, porque não parece justo que ao tempo em que se cria um lugar, que tem notícia ser povoado com alguns destes, que se diz, serem os mais opulentos dele, se ache com o temor da justiça deserto, por cuja causa, para o maior sossego, se concedeu o mesmo indulto algumas vezes a vários moradores do Maranhão, que se achavam criminosos” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 19).
Para executar suas decisões e dar-lhe proteção, esse ouvidor pede vinte soldados tirados da praça do Maranhão junto com um sargento ou alferes, os quais sendo casados poderiam levar suas mulheres para aumentarem a povoação. Pede também autorização para a criação de novas vilas, a fim de sujeitar o gentio, trazendo-os ao doméstico trato e ao grêmio da igreja. No que se refere à vila da Mocha, por notícias recebidas, pede que se lhe autorize criar os ofícios da justiça, que ainda não existiam, a construção da casa da câmara e cadeia, que também não existiam, porém, sugere sejam essas construídas em outro local, justificando:
“No distrito da dita vila se diz haver melhor fundação para ela, do que aquela em que está estabelecida, em a qual com o consentimento do povo, sendo mais salutífera e capaz do comércio, que segundo a qualidade da terra se permite, se lhe deve dar faculdade se faça as casas que houverem de servir de câmara, audiência e cadeia, porque nesta forma se continuará a povoação nesse limite, e por razão do sítio se aumentará”. Pede seja concedida uma légua de terras para patrimônio e renda da vila, privilégios de jurisdição aos seus moradores na própria vila nas causas que demandarem, sendo esse pleito negado pelo Conselho Ultramarino (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 19).
Sobre a situação patrimonial da vila da Mocha, é esclarecedora a correspondência desse ouvidor:
“Também me dá conta de que a terra em que está a vila, era da que se repartiu para a Igreja, e passais do vigário, e que seria necessário comutar aquela terra por outra, que se desse à Igreja e que aquela ficasse para a Vila, para se aforar para a câmara, ficando desta uma légua de terra para o referido, e a isto respondi que se informasse se o vigário aceitaria outra terra em lugar daquela, e que antes de se aumentarem os edifícios, visse se a situação da vila era capaz porque me diziam que era em uma baixa e em um lamaçal, por cuja causa era mui doentia, e que visse consultando a câmara e aqueles moradores se havia melhor lugar e sítio mais capaz para se estabelecer a dita vila, e que me informasse para dar conta a V. Maj., porque muitas vezes se choram ao depois sem remediar a eleição de semelhantes fundações, e sobre esta matéria espero também Resolução de V. Maj.” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 26).
Em 23 de setembro de 1727, a preocupação de Marques Cardoso era para resolver as queixas do marchante da vila da Mocha, que havia arrematado os dízimos com a condição de que os donos dos gados preferissem a ele na venda dos animais e não os vendendo, que cortassem no açougue pagando-lhes o subsídio. Porém, estava esse arrematante enfrentando concorrência desleal por parte de pessoas de fora que adquiriam o gado sem respeitar aquela preferência e vendendo a arroba por oitenta reis a menos do que tinha sido arrematado. Deferindo esse pleito junto com a câmara, mandou fixar edital no lugar de costume. Entretanto, “foi o mesmo riscado e alterado por Manuel Peres Gutierres e Floriano Correia de Brito, ambos moradores em uma casa e naturais de Pernambuco, sendo o dito Manuel Peres homem tumultuoso e de má consciência, que tinha fugido das Minas por crimes e por esse respeito se prenderam”. Disse que o mesmo Manoel Peres era mal visto porque desde que chegou à vila tinha colocado alcunha em muitos moradores e, também, suspeitava ser ele autor de alguns papéis apócrifos que vez ou outra circulavam na vila. Todavia, antes desses fatos fora ele aceito como rábula. “Floriano Correia serviu o ofício de juiz de órfãos mas foi suspenso por mal procedimento”. Por fim, foram condenados pelo crime de conjuração a quatro anos de degredo no Maranhão e Pará, respectivamente, prendendo-se de imediato com guarda à porta. Ao comunicar esses fatos desabafou de forma a exprimir sua real situação: “... estou neste sertão muito remoto sem defesa alguma e sem oficiais de justiça de que se carece para se administrarem, e sem cadeia capaz, e pouco segura e só com a companhia de semelhantes homens, uns pelo seu mau ânimo, como este Manoel Peres Gutierres, e outros pela sua rusticidade não têm temor algum de Deus, e assim sem poder algum só se faz justiça como se pode, e não como se deve fazer, porque em outra forma poderia ter sucedido algum absurdo, a que se não pudesse acudir sem grande desordem” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 34).
Em 3 de outubro de 1727, o Ouvidor Antônio Marques Cardoso faz alguns pleitos e ponderações baseadas numa sessão do Senado da Câmara de 15 de dezembro de 1718. Naquela oportunidade pediram os oficiais que a câmara fosse autorizada a passar carta de seguro, obrigando-se à correição de Ministro a cada três anos; também, que a remessa do dinheiro do cofre dos defuntos e ausentes fosse mandada para a Bahia, porque era de prejuízo para o Maranhão, onde o pagamento nunca era no mesmo gênero remetido, bem como a remessa para o reino corria risco de descaminho em face dos navios não serem comboiados por naus de guerra, como o eram pela Bahia, discordando apenas da remessa do cofre dos defuntos e ausentes com fundadas alegações; sobre os riscos da remessa do dinheiro ponderam os vereadores que no caminho do Maranhão havia risco de ataque do gentio e no da Bahia do assalto de ladrões, pois existiam trechos desertos; pedem ajuda para construírem cadeia e casa da câmara, pois não tinham renda, sendo a terra em que se achava a vila concedida a Nossa Senhora. No que se refere à cadeia, esclarece o ouvidor, que depois que chegou usara parte da casa de um oficial de justiça e depois a casa toda, sendo aquele obrigado a desocupá-la, onde colocara um tronco que se seguiu outro para prender os detentos; depois, tentando construir prédio mais seguro esbarrou na falta de pedreiro e carpinteiro no lugar, apenas sendo construídos os alicerces pelos escravos de um morador que se oferecera a construir. Naquela ocasião, pediram também os oficiais da câmara a nomeação de ouvidor para o Piauí, porém, como esse pleito não foi unânime, alguns se colocando contra a presença de tal autoridade, somente em 16 de janeiro de 1721, foi aquela correspondência assinada pelo oficiais daquela gestão, de que agora nos informa o ouvidor Cardoso. Foi com base nesse documento que ele teve a certeza de que nem todos os moradores desejavam a presença da justiça no Piauí de antanho (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 35).
O ouvidor Antônio Marques Cardoso foi substituído por José de Barros Coelho. E este logo que chegou à Mocha, teceu interessantes informações sobre o território de sua jurisdição, datadas de 9 de março de 1730:
“Compreende este lugar de uma vila que terá 25 até 30 vizinhos, e 450 até 500 currais de gado dividido por toda a capitania de 4 em 4 léguas, e em muitas partes de vinte e 30 léguas se não acha morador algum, e donde são mais os currais e roças é no sítio do rio chamada Pernauha[Parnaguá], e outros no rio Pernahiba, não que sejam vilas ou aldeias, mas pela dita razão de serem nos tais sítios mais frequentes as roças e currais; não tem esta vila casa de câmara e quando se ajuntam os vereadores fazem os acórdãos em casas de moradores ou na do juiz ordinário; não tem também cadeia, e querendo meu antecessor obrigar o conselho a que fizesse cadeia se desculparam com o mostrarem que não tinham um só vintém de renda, o que foi preciso mandar o meu antecessor fazer um tronco à sua custa, e por ele guardar aos presos, cujas guardas são pagas e sustentadas à custa dos ouvidores porque nenhum da terra ama a justiça, antes solicitam extingui-la, tanto assim que se uniram alguns régulos para matarem meu antecessor, de que sendo descoberta a verdade e remetidos à Relação da Bahia foram uns degredados e outro justiçado cuja cabeça se acha nesta vila, donde a não haver cadeia não pode haver boa administração da justiça, e para esta ser feita sem dispêndio da Real Fazenda, bastaria que Vossa Majestade concedesse provisão para aplicar nas sentenças crimes, algumas penas pecuniárias para a dita cadeia vendo como (...) Lei do Reino o não possa fazer sem especial provisão e a V. Maj., não ser servido concedê-la me parece impossível poder administrar justiça sem receio de castigo em terras onde todos que a habitam são pessoas que retiradas por culpa de outras terras se retiraram a este sertão para viverem sem receios das justiças, pelo que dou a V. Maj., esta conta para que se digne mandar passar provisão para que nas sentenças crimes possa aplicar pena pecuniária para se fazer uma cadeia e V. Maj., ordenará o que for servido. Moucha do Piauhy de março 9 de 1730”(AHU. ACL. CU 016. Cx. 1. D. 55 e 57).
Em 13 de maio de 1731, Barros Coelho volta a abordar a necessidade de construir uma casa da câmara, uma cadeia e um pelourinho na Mocha, acrescentando que a câmara não tem rendimento algum por estar de posse o vigário de todo sítio em que foi criada a vila. E diz ter sido o seu antecessor quem construiu o tronco existente, sustentando à sua custa os guardas, os quais de presente está ele sustentando. Embora instando os oficiais da câmara a construírem a sua sede, desculpam-se esses alegando falta de rendimento. Por essa razão, solicita que os dízimos reais pagos pelos moradores do Piauí sejam aplicados nas despesas do conselho. Em 19 de maio do mesmo ano enfatiza a falta de verbas para a reparação da cadeia improvisada, fala dos crimes ocorridos na capitania e volta a pedir o pagamento de sua ajuda de custo (AHU. ACL. CU 016. Cx. 1. D. 066, 067 e 071).
Em 26 de fevereiro de 1732, o bacharel José de Barros Coelho justifica ao rei sobre as razões porque não mandou construir hospício da vila da Mocha, onde deveriam servir seis padres da Companhia de Jesus e um clérigo. Essa obra fora autorizada por provisão de 3 de abril de 1726, em cuja construção seria aplicada metade da verba das condenações que satisfizesse na capitania por uma vez somente até a quantia de três mil cruzados. Comprova com documentos que em virtude da dita ordem seu antecessor fez muitas condenações e ele algumas, que fizeram a conta de um conto e setecentos mil reis. Porém, muitas sentenças de seu antecessor foram reformadas na Relação da Bahia e de outras ainda não chegaram o resultado dos recursos, dada à grande distância, assim não se podendo executá-las, razão pela qual não alcançaram àquela pretendida soma de três mil cruzados. Por fim, diz que este hospício está direcionado para a capitania do Ceará, e não nesta à falta de rendimento, não tendo a vila da Mocha, casa de câmara nem cadeia, havendo apenas um tronco que com despesa dos ouvidores se fez e se tem conservado, sustentando-se guarda para a segurança dos presos (AHU. ACL. CU 016. Cx. 1. D. 075).
Em 16 de maio de 1733, o referido ouvidor escreve ao rei sobre os requerimentos do vigário da igreja matriz de Nossa Senhora da Vitória, padre Tomé de Carvalho e Silva, solicitando ornamentos para a igreja, ajuda de custo e pagamento das côngruas em atraso, desde quando se desanexou da capitania de Pernambuco e passou para a do Maranhão, em 1702. Por esse tempo o referido vigário estava às voltas com a edificação da igreja matriz, que aumentara e mandara construir uma torre (AHU. ACL. CU 016. Cx. 1. D. 096).
Em 20 de abril de 1734, o novo ouvidor Francisco Xavier Morato Boroa envia ofício a el-rei tratando do patrimônio da vila, cujo terreno medindo de norte a sul o espaço de três léguas e de nascente a poente duas léguas e meia, pouco mais ou menos, fora dado para passal da matriz em 1704. E porque a renda desses passais não deveria passar de vinte mil réis por ano, suposta a má qualidade das terras, sugere que esse valor fosse pago àquele “pelo Almoxarifado aonde cobra a sua côngrua e que o tal sítio ficasse consignado para logradouro público do conselho, que muito necessitava aquela vila, dando-se faculdade aos provedores da fazenda real para poderem com o parecer dos oficiais da câmara, aforar em praça alguns pedaços de terra para roças e que o seu rendimento se aplicasse ao conselho, e por constar a ele ouvidor que nas vizinhanças daquela vila não havia outra alguma terra despovoada que permita aquela consignação”. Sobre esse assunto o Conselho Ultramarino emitiu parecer favorável em 27 de agosto de 1735, inclusive concluindo que o desembargador Carlos de Azeredo Leite, se excedera na concessão dessas terras. E mandou ouvir ao vigário para saber se este aceitava a sugestão. Porém, como em setembro de 1735, havia falecido o antigo vigário colado, Pe. Tomé de Carvalho e Silva, respondeu favoravelmente ao recebimento do indicado valor a título de passal e em troca da terra, além da côngrua, o vigário encomendado Pe. Antônio Henrique de Almeida Rego, que respondia pela freguesia, conforme esclarece o ouvidor em 5 de abril de 1736.
Em 6 de maio de 1737, Morato Boroa volta ao assunto, desta feita esclarecendo que a matriz nunca teve qualquer côngrua estabelecida para a sua fábrica, que sua renda era insuficiente e incerta; que a igreja era do Mestrado e Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e que os dízimos da capitania se arrematavam e cobravam para a Real Fazenda; e suposto na criação e ereção desta matriz, se obrigarem os fregueses dela por termo que assinaram, a pagarem ao pároco a sua côngrua, e fabricarem e ornarem a igreja de todo o necessário, não o fizeram; e o dito pároco era pago pela Real Fazenda, tendo V. Maj., havido por boa esta criação e obrigação por Alvará de 5 de fevereiro de 1698; esclarece que desde muitos anos o vigário daquela matriz era pago pela Real Fazenda, porém, por irem em aumento os dízimos pela cultura da terra e crescimento dos fregueses, entendia devesse cessar a obrigação destes pagamentos e a Real Fazenda ficar na obrigação de concorrer para as despesas; da mesma forma, esclarece que os padres da freguesia desde muitos anos cobravam de seus fregueses pelas confissões e desobrigas, o que também deveria cessar com o estabelecimento da côngrua (AHU. ACL. CU 016. Cx. 2. D. 115, 126, 135 e 143).
Em diferentes ocasiões, Morato Boroa pediu ao governador do Estado uma esquadra com doze ou quinze soldados, para que assistindo na vila pudessem manter o respeito da justiça e auxiliar nas diligências. Porém, em 9 de setembro de 1738 o governador João de Abreu Castelo Branco solicita parecer do Conselho Ultramarino sobre a forma de manutenção desses soldados, vez que “pela diferença da moeda e do sítio é preciso que haja alteração na forma com que devem subsistir”. É que no Piauí corria a moeda do reino e no Maranhão, a moeda corrente era o pano de algodão. Respondendo à consulta sugere o ouvidor Morato Boroa, que esses soldados vencessem o mesmo soldo que venciam em sua praça, satisfazendo-lhes pelo rendimento dos novos direitos ou pelo produto dos dízimos e para o sustento diário poderia ser criada uma leve contribuição aos moradores ou finta que se impusesse a todos os fabricantes de aguardentes, o que dependeria de Resolução Real. Contudo, enquanto não se resolvesse a situação opinou o governador que se mandasse provisoriamente doze soldados para a vila da Mocha, sendo os mesmos rendidos a cada um ano. Que percebessem em pano de algodão o seu pagamento ordinário, acrescido de duas varas e meia de pano por cada mês, para um alqueire de farinha, que se lhe desse em lugar do pão de munição, remetendo-se este pagamento para o procurador da câmara da vila da Mocha, para lhes ser distribuído na ocasião de mostra que se lhe devia passar por livro, ficando esses soldados à ordem do capitão-mor daquela vila, no caso de se considerarem alguma impropriedade em estarem inteiramente à ordem do ouvidor-geral (AHU. ACL. CU 016. Cx. 2. D. 149).
Em 11 de abril de 1744, Custódio Correia de Matos, como Provedor da Real Fazenda, inquiri testemunhas e dar parecer favorável ao pleito do vigário da freguesia de N. Sra. da Vitória, João Rodrigues Covete, que solicitara paramentos para a sua igreja matriz. De fato, dois anos antes, quando fora confirmado e colado, este pároco se anima em solicitar a el-rei vários ornamentos, informando que sua igreja possuía três altares, sendo o mor com doze palmos de comprido e dois colaterais, cada um com oito palmos, os quais não têm mais que uns ornamentos cotidianos, de uma só cor, e um de damasco branco para as festividades, faltando desta sorte a observância das rubricas na falta das mudanças das cores. E conclui pedindo em socorro de sua igreja, ao menos três casulos, três frontais, duas dealmáticas, uma capa de asparges, um pano de púlpito, um pálio, um véu de ombros e um sino de dez até doze arrobas, cujos ornamentos serão de grande utilidade. Em outro pleito que não foi apreciado no parecer, o referido pároco pede o restabelecimento do pagamento de vinte mil réis, além da côngrua que seu falecido antecessor recebia a título de passais (perdido para o proprietário Domingos Jorge Afonso), assim como o pagamento de côngrua ao seu coadjutor (AHU. ACL. CU 016. Cx. 3. D. 185, 187 e 220).
São esses alguns aspectos interessantes a se relatar sobre a fundação e desenvolvimento da Vila da Mocha, esses últimos quase todos inéditos e extraídos de fontes primárias. É a nossa contribuição nessa efeméride comemorativa dos trezentos anos de sua emancipação política. Aliás, a povoação foi elevada à categoria de vila por carta régia de 30 de junho de 1712. Era o primeiro passo para instalação da ouvidoria-geral. Entretanto, em face de alguns percalços somente foi solenemente instalada a vila com a denominação de Mocha, a primeira e única do Piauí, em 26 de dezembro de 1717, pelo ouvidor do Maranhão, Vicente Leite Ripado, que deu posse aos oficiais da câmara.
Outro aspecto relevante a se relembrar foi a visita pastoral feita pelo Bispo do Maranhão, D. Fr. Manuel da Cruz, deixando interessantes impressões sobre a povoação, a que diz ser conhecida por Corte do sertão. Chegou ele à vila em 12 de janeiro de 1743, ali permanecendo pelo espaço de quatro meses e quatro dias, até 16 de maio, quando deslocou-se para o Gurgueia e Parnaguá. Em suas impressões de viagem anotou esse notável bispo do meio-norte brasileiro:
“Desta paragem se vai deixando a serra e o sul e caminhando para o poente aonde está situada a vila da Mocha, a que cá chamam a Corte do Sertão; porque é terra de comércio do Maranhão, Bahia e Pernambuco; está esta vila situada nas melhores terras do Piauí porque está cercada de campos mais férteis para roças e para gados vacum e cavalar, que são os gêneros em que se contrata no sertão” (Copiador, fl. 59).
Percebe-se claramente que, ao contrário de alguns ouvidores que apontaram a esterilidade do solo em que estava situada a vila, este bispo fez uma análise mais abrangente, não do sítio em que estava sendo edificada a vila, mas da circunferência das fazendas, percebendo a fertilidade das ribeiras do Piauí e Canindé, a que também se reporta.
Por carta régia de 19 de junho de 1761, reiterando uma provisão anterior, el-rei D. José I dar nova estrutura administrativa à capitania. Eleva a vila da Mocha à categoria de cidade, efetivando-a como capital e promove à categoria de vila a sede das seis freguesias existentes, à exceção de N. Sra. do Carmo da Piracuruca, que por questão de estratégia econômica e militar, deveria ser a vila instalada na foz do rio Parnaíba, sendo hoje a cidade de Parnaíba.
No entanto, em 13 de novembro de 1761, o governador João Pereira Caldas comunica o Senado da Câmara um acréscimo ao nome da capitania e a mudança de nome da capital, para Oeyras do Piauhy, na forma seguinte:
“Ordeno, que ao nome dela se acrescente, ou anteponha o de S. Maj. e sempre Augusto, e que daqui por diante se denomine, Capitania de S. Jozé do Piauhy, porque deste modo compreenderão mais facilmente os vindouros, que o redentor deste País, foi el-rei D. Jozé o primeiro nosso Senhor. E porque nas fundações das novas vilas, que o mesmo Senhor me manda estabelecer nas Freguesias deste governo, me determina lhe imponha os nomes que bem me parecer, sem atenção aos bárbaros, que presentemente conservam, de cuja qualidade, sendo o que atualmente tem esta vila, e fazendo-se preciso por isto removê-lo na forma daquelas reais ordens, e substituí-lo de outro, em que se não encontre a sobredita barbaridade; ordeno também, que omitindo-se o de Mocha, se fique denominando a mesma vila de agora em diante com o de Oeyras do Piauhy; o que igualmente se observará, ainda quando for erecta em cidade” (APP. Cod. 146, p. 34v-35).
Finalmente, depois de percorrer toda a capitania instalando as novas vilas, retorna o governador, publicando um bando em 24 de setembro de 1762, que efetiva a ordem real erigindo Oeiras em cidade e capital do Piauí.
Contudo, depois de noventa anos Oeiras perdeu o título de capital do Piauí, quando foi fundada a cidade de Teresina e, oficialmente, instalada a capital em 16 de agosto de 1852. Mas permanece para sempre rica de história, com belo conjunto arquitetônico, renascida em seu comércio, com sede episcopal e um povo acolhedor. Nesse momento comemora trezentos anos de vida política, sobre cujo assunto já publicamos um artigo. É esta mais uma contribuição à sua história.
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*REGINALDO MIRANDA, autor de diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico e Piauiense e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]