[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Alguns discursos da esquerda a respeito do atentado contra o jornal parisiense CH são iguais ou até mais sórdidos que os da extrema direita. A direita usa do atentado para fomentar o xenofobismo. A esquerda tem um tom mais intelectual. Começa condenando o atentado para, logo em seguida, dizer que antes de tudo devemos “entender o terrorismo”. Ora, quando vamos com a esquerda, então, dar o passo para o “entendimento”, eis que as linhas nos levam para o resultado que nada tem a ver com “entender”: os cartunistas ofenderam a religião islâmica. Ao final, entender é antes de tudo equalizar o desenho com o assassinato, o lápis com a metralhadora, a tinta com o sangue. No final do discurso da esquerda emerge o desejo da direita: olho por olho dente por dente, só que num sentidos inversos.

A direita culpa o Islã, como se o islamismo fosse todo ele fanatismo e como se outras religiões e até doutrinas nada religiosas não tivessem seus fanáticos. O próprio xenofobismo da direita é um fanatismo – e Hitler soube dizer o que tal coisa é capaz de fazer. A esquerda, por sua vez, usa da frase “condenamos o atentado” para em seguida falar da opressão capitalista (judaico-americana, em algumas bocas) contra o “mundo árabe”, e de como meia dúzia de cartunistas foram “irresponsáveis” e nos levaram todos a ficarmos expostos à vingança – que a essa altura é vista como uma reação “condenável”, mas agora, “entendida”. Ao final, a esquerda mostra que nunca entendeu nada do que leu em filosofia, quando ainda lia filosofia. Sócrates e sua ironia são condenados pela esquerda.

Atenas condenou Sócrates. A Atenas antiga e que é o berço da civilização ocidental com sua democracia, não suportou o cartunista Sócrates. Historicamente há grandes questões sobre as causas da condenação de Sócrates, pertinentes às acusações e não pertinentes. Mas uma delas nunca deixou de ser verdadeira e apontada pelo próprio Sócrates: não conseguiram perdoar-me por eu ter inventado a palavra ironia no sentido que ela veio a adquirir, paguei com a vida exercer a atividade irônica. A nossa democracia pode, justamente pela esquerda, pelo falso desejo de “entender”, terminar por merecer o que Diderot escreveu: “o talento é imperdoável”. A esquerda que ainda está com Stalin na cabeça, mesmo que diga o contrário (Trotsky é o mesmo lixo!), nunca gostou de pessoas inteligentes. O inteligente sorri, não precisa rir forçado. Isso é imperdoável. Desenhar a bunda de Deus é imperdoável, já que, sabe-se lá como, Deus adquiriu bunda!

Eis o impotente nanico. Não pode escrever. Não pode desenhar. Não conseguiu sofisticação intelectual suficiente para revidar, então revida armado. A última razão continua sendo, para o fanático, para o medíocre, a razão da espada.

Que não me venham acusar os não-ocidentais de porem a razão da espada antes da razão liberal. Os ocidentais sempre fizeram o mesmo, ainda que tenham ensinado os não-ocidentais a democracia liberal. Mas, antes disso, os não-ocidentais já haviam tido eles mesmos o seu “iluminismo”. Nunca devemos esquecer a cultura árabe como a cultura que nos devolveu Aristóteles. Por isso mesmo, por haver pontes iluministas entre o Ocidente e o “o lado de lá”, é que é válido cobrar de ambos os lados, e não só de um lado, que a razão liberal se ponha adiante da razão da espada. Nesse caso, cabe sim condenar o ataque em absoluto, sem relativizações do falso desejo de “entendimento”. A razão do cartum não é a razão da espada. O cartum não é só jornalismo, é antes de tudo arte. Quando a arte ofende a ponto de justificar a frase “se escuto a palavra cultura eu passo a mão no coldre”, atribuída a um nazista, a condenação é geral.

O cartum é também filosofia. Caso Sócrates escrevesse ele não colocaria nada no papel que fosse letra, só desenhos.

Que a direita continue sempre a mesma, querendo culpar a religião e a nação do “outro”, isso já era esperado. O que eu não esperava é ver a esquerda ainda se repetindo. A esquerda que tentou “entender” Bin Laden agora quer “entender” os fanáticos e, para tal, faz o mesmo da direita, diz: são adeptos do islamismo, por isso agiram assim. Não, não são. São do reino do assassinato. São do reino da eliminação. São do reino das seitas fanáticas que a esquerda e a direita conhecem bem, pois não raro elas estão nisso, no fanatismo.

Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.