A dona arrumadeira
Por Chagas Botelho Em: 25/04/2023, às 09H43
[Chagas Botelho]
Mamãe sempre foi vaidosa. Ainda hoje, mesmo acamada, mantém a vaidade em dia. Também era zelosa com seus móveis e eletrodomésticos. Nos idos anos bucólicos, quando gozava de plena saúde, nossa casa era um brinco. Organizada da porta da rua ao quintal. O piso, de um cimento avermelhado, era constantemente encerado. Brilhava por dias a fio. Porém, ficava escorregadio feito quiabo. Ralhava com qualquer desavisado que ousasse entrar sem esfregar os pés no tapete de lona.
Nos cômodos, tudo combinava. Colcha com fronha. Cortina com manta. Toalha de banho com toalha de rosto. Só não lembrava casa de boneca porque, enfim, era enorme. Vários quartos, varanda ajasminada, sala, dispensa e ela, no braço, dava conta do recado. Vivia apegada a um cabo de vassoura, ora de palha, ora de piaçava. Ai de papai, pedreiro dos bons e habilidoso reparador de goteiras, se deixasse uma parede sem reboco ou uma brecha gotejante no telhado.
A imagem de mamãe caprichosa continua firme em minhas lembranças de infância. Não condiz com seu estado atual, de senhorinha frágil e adoentada. Exilada em Teresina, longe de seu lar doce lar, por orientação médica, é melhor está cá do que lá, há com ela a eterna preocupação em saber como estão suas coisas. Quando um de meus irmãos vem de Barras do Marataoã visitá-la, antes que este estenda a mão para lhe pedir a benção, ela, peremptória, pergunta: “como está a minha casa?”.
O apego ao seu domicílio é dopamínico. Não é materialismo. Não vejo desta forma. Mamãe é de uma época diferente cuja função primordial da esposa era cuidar da casa. Embora, por longo tempo, tenha sido empregada doméstica. Sem alfabetização, mal sabia escrever o próprio nome, teve que passar e levar roupas para a nobreza barrense. Tornou-se exímia passadeira e lavadeira. Envelheceu com a mania de deixar tudo em ordem. Possuía outras habilidades, é claro. Mas isso é pano para outra crônica.
Voltemos ao seu incontido zelo. A propósito, me lembrei agorinha. Lá em casa, a maioria dos mínimos objetos eram cobertos por guardanapos. Todos feitos de crochê. Adivinhem quem os confeccionava? Ela mesma, madrecita. Na tampa do filtro de barro havia um paninho. No puxador da geladeira, outro. A caixa de fósforo, dentro da casinha de chita. Até a jarra de água, no formato de abacaxi, tinha capa. Os panos de prato, bordados com os dias da semana, ficavam pendurados em fileira na corda de nylon.
Rolava uma briga, caso colocassem as patas no sofá de vime. Na hora de assistir à TV, que também mantinha seu pedaço de renda sob a antena, o ritual se dava assim: os filhos sentavam em cadeiras de espaguetes. Papai em sua espreguiçadeira de estimação. Mamãe, bem, mamãe não sentava, apenas vigiava se algum de nós quebraria o protocolo cerimonial.
Então, o Jornal Nacional começava. O ambiente deveria permanecer impecável. Do jeitinho que ela arrumara. Qualquer alteração provocaria cizânia. Nisso de não poder mexer nos enfeites imaculados, ninguém era maluco de arriscar a pele, eu tinha a ligeira impressão de ver o Cid Moreira espichar a cabeça da câmara e com aquela sua voz de trovão, insultar a dona arrumadeira: “ô senhora, dá para tirar esse paninho da minha cara?”.