A devassa na boca do professor de ética
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 11/11/2010, às 14H09
[Paulo Ghiraldelli Jr]
Felizmente os professores de ética atuais não são os filósofos éticos gregos que, com seu comportamento, faziam a filosofia se espraiar e criavam discípulos. Caso fossem, correríamos o risco de ver não só um grupo de estudantes de filosofia saindo às ruas contra a cerveja, mas, talvez, todo um partido de militantes dessa nova postura ascética. Então, uma boa parte da indústria de bebidas entraria em colapso, causando desemprego. Talvez fosse a revolução anti-capitalista, tão esperada por alguns!
Esses estudantes seriam os discípulos do professor de ética Renato Janine Ribeiro. Para comentar a proibição da propaganda da cerveja Devassa, ele iniciou fazendo profissão de fé na sua aptidão para o gosto sofisticado quanto à bebida e ao sexo. Ele poderia ter iniciado seu texto falando da proibição, mas não, ele precisou, antes, falar de como perdeu o gosto, de uma vez, pela cerveja Devassa, quando a viu associada ao nome de uma atriz pornô. Cito a passagem que, confesso, achei um tanto engraçada:
“Provei a cerveja Devassa num dia no aeroporto. Mas, quando vi na TV sua propaganda com uma norte-americana rica que deve a fama a um vídeo pornô que circulou na internet, achei de mau gosto e perdi a simpatia pela bebida. Ponto. Agora, quando o Conar retirou a propaganda do ar, vale a pena discutir um pouco o assunto”. (Folha de S. Paulo, 07/03/2010)
Qual o objetivo de, em um texto sobre a censura, antes de tudo se colocar como alguém que está acima de Paris Hilton e de cervejas que podem estar ligadas, nas propagandas, a mulheres? E será que a forma com que Janine Ribeiro falou do assunto “vale a pena discutir um pouco o assunto”?
O texto do professor de ética segue, então, de maneira ziguezagueante: usa vários parágrafos para titubear e, ao fim, não conseguir condenar o que foi, claramente, um ato de censura. Envolve discussões não cabíveis sobre “mulher objeto” (a essa altura do campeonato?) e suas relações com a “sensibilidade” do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – órgãos privado). Fala e fala e não diz nada.
Pode ser que Renato Janine Ribeiro ainda esteja traumatizado por conta das reações a seus últimos artigos. Um deles, em que ele deixou escapar um possível gosto (nada sofisticado, diga-se de passagem) pela pena de morte, lhe deu boa dor de cabeça. Teve de enfrentar um Jô Soares que, como um professor mais velho, puxou sua orelha dizendo “o que se passou nessa sua cabecinha Renato?”. Isso sem contar os artigos anteriores, de defesa envergonhada do governo mensaleiro, quando ele ainda era membro da Capes. Pode-se lembrar, também, o artigo sobre a garota hostilizada na Unibam, em que ele, de modo muito estranho, poupou a escola em um momento em que todos apontavam para o descaso para com o ensino em uma universidade como aquela. Sim, tudo isso pode ter deixado o professor de ética sem jeito.
Todavia, lá pelo final do artigo, Janine Ribeiro parece encontrar o eixo: ele faria, sim, uma objeção à propaganda: ela ligaria sexo e bebida de um modo a não fomentar a imaginação, uma vez que seria uma propaganda sem erotismo. Ah, então aí começamos a entender a razão de Janine ter começado retratando o seu próprio gosto sofisticado. Ele é adepto do erotismo e, em nossa sociedade, há muito sexo e pouco erotismo. Ou seja, há uma perda da imaginação.
Ora, dito assim, eu endossaria a afirmação de Janine. A geração dele, mais que a minha até, foi leitora de Marcuse. Talvez não ele, que não vem da tradição frankfurtiana da qual eu venho, mas como jovem dos anos 60 ele sem dúvida soube bem absorver a crítica da época: vivemos uma civilização que, para ser civilização, cortou os pulsos de Eros. Tenho dito isso até hoje. Quanto mais há a venda de Viagra e quanto mais precisamos de propaganda para consumo de pornografia, mais isso denota que estamos apáticos, que não nos erotizamos mais, que nos deixamos sucumbir pelos ditamos da “sociedade do trabalho” (Marx) ou da “sociedade administrada” (Adorno) ou coisa parecida. Sim, mas será que é isso que Janine quis dizer?
Penso que há em Janine, na verdade, menos sofisticação do que ele quer fazer parecer e, talvez, um rabicó de puritanismo. Convido o leitor para concordar ou discordar de mim. Vejamos, vamos ao que nos interessa: a propaganda.
Quem viu a propaganda da Devassa pode simplesmente dizer: foi a propaganda menos apelativa ao sexo que já vi em relação a bebidas. Foi, sem sombra de dúvidas, na comparação com outras, em que partes sexuais da mulher são enfatizadas (principalmente as nádegas), uma propaganda que mostra o voyerismo do fotógrafo em cenas belíssimas. Nada de “devassidão”. Muito menos de pornografia. A propaganda é um elogio ao trabalho fotográfico do erotismo de algo nível. Renato Janine Ribeiro ou não viu a propaganda, o que é gravíssimo para um professor que escreve comentando sobre ela, ou simplesmente viu e, por conta de algum drama psicológico, não conseguiu fazer a distinção entre o erótico e o pornográfico, entre o que faz a imaginação andar e o que faz a imaginação parar.
O que faz a imaginação andar na literatura expressa em livros é uma coisa. As possibilidades da TV são outras. Quando criticamos a TV por ela não provocar a imaginação que o livro pode fomentar, cometemos uma injustiça, além da burrice implícita na comparação. A TV é imagem e som, e de modo rápido. Fazer TV imaginativa implica em reconhecer os limites e as possibilidades desse meio por ele mesmo, e não em comparação a outros. O publicitário da Devassa acertou a mão. A propaganda é boa e nada tem de ofensiva – não há nem mesmo cena de nudez ou qualquer gesticulação pornográfica. Assim, talvez tenhamos de ir menos pelo saber superficial de lições de ética e mais pelo conhecimento filosófico amplo. Um filósofo deveria antes desconfiar de algo que é um segredo de Polichinelo: o Conar não cedeu a qualquer imperativo ético novo ou velho, ele certamente se viu no interior da guerra econômica por mercado – e isso sim foi a devassidão que caiu sobre a Devassa. O resto é frescura – infelizmente, frescura que não vem do sabor da Devassa ou de qualquer outra cerveja.
Bem, abram uma cerveja, brindem a Epicuro e esqueçam falsas lições de ética!