ROGEL SAMUEL



O capitalismo regido pelo Estado nasceu para enfrentar o perigo que representava, para o sistema, um antagonismo declarado entre classes, para bloquear o conflito de classes através da “racionalização”. O sistema de capitalismo de serviços se define por uma política que assegura as massas certas gratificações compensadoras, como política de evitar os conflitos que nascem das necessidades que se situam na periferia do domínio do Estado. Tais conflitos são conflitos de interesses, já que as perigosas confrontações de classes foram camufladas e se tornaram latentes. As diferenças de classe ainda existem, no que se refere ao nível de vida, aos hábitos de vida e às atitudes políticas. A classe dos assalariados é mais tocada pelas disparidades sociais do que os outros grupos, criando-se assim uma certa hierarquia de privilégios, uma pirâmide no que antes era constituído por dois blocos distintos: a classe dominante e a classe dominada, O sistema tratou de confundir ou dissolver esta perigosa distinção, numa fusão de interesses, criando-se a noção de um poder distribuitivo e expansivo. O sistema se defende contra o que o coloca em perigo através de um feed-back legitimador permanente, que aperfeiçoou através de séculos de representatividade parlamentar, desde os tribunos do povo, no Império Romano, desaparecidos na Idade Média, mas reintegrados no jogo democrático do século XVIII. A dominação tem feito, pois, uma política “de fachada” sempre, no que se refere a esta repartição compensadora do poder e dos privilégios, e estes interesses transcendem às fronteiras latentes entre as classes dissolvidas.

Entretanto, no Terceiro Mundo não foi totalmente erradicado o importante perigo e todo o potencial do conflito entre classes, porém a “racionalização” já conseguiu um deslocamento da zona conflitante para setores subprivilegiados da vida social, como o dos negros e dos índios. Mas trata-se, apesar de tudo, de substituir a insolúvel confrontação de forças pela solução de redistribuir as energias sociais da decisão e, conseqüentemente, de dissolver o sistema ao máximo, permitindo interesses econômicos envolvidos. Passamos assim da noção de classe dominante e classe dominada, para um reescalonamento de privilégios, a uma hierarquização dos privilégios, indefinidamente distribuídos, no aparente crescimento da idéia de progressão social. Não é sem motivo que a sociedade vive cheia de mitos modernos de ascensão social individual, de indivíduos que tiveram “sucesso na vida”, estimulando-se assim o próprio condicionamento. E a atual onda de crises econômicas serve para desviar a atenção do verdadeiro problema.

As reivindicações modernas guardam na raiz o caráter de apelo, não a força de uma real luta de classes: esse é o ideal da sociedade do capitalismo de serviços. Assim como apelo, e não como confronto, não tem as reivindicações um aspecto de contestação revolucionaria. Além do que o Estado tem redistribuído seu poder, e os grupos subprivilegiados da massa despolitizada não sabem mesmo contra quem lutar. Como diz o Quixote, “eu já nem sei o que consigo à custa de tantos trabalhos”. Um repórter norte-americano, em 1957, quando o primeiro satélite artificial foi posto em órbita, disse que era o primeiro “passo para libertar o homem de sua prisão”[i]. Pois “a humanidade não permanecerá para sempre presa a terra”, disse um cientista, na época. A terra (o planeta), e o mundo (artifício humano) pareceram a estes indivíduos como lugares não muito interessantes para o gênero humano. Diz Arendt[ii] que o problema tem a ver com o fato de que as “verdades” científicas atuais, embora possuam demonstrabilidade matemática , comprovação tecnológica, já não podem entrar no discurso humano normal, na fala normal da vida diária, no raciocínio do homem da chamada opinião pública. O positivismo elevou a ciência ao ponto de transformá-la numa nova lei, uma nova fé, que responde a tudo, a que todos respeitam as cegas, sem compreender. As massas das sociedades regidas pelo capitalismo avançado, anônimas e despolitizadas, sem chances de participação política decisiva, exceto no simbólico ritual do voto e dos comentários, passivamente recebidos pela TV, que de tudo participa e que traz para a vida privada os “grandes momentos” decisivos da história, rendem culto a uma tecnologia que detém o poder e o saber num ponto inquestionável do mundo moderno, a saber, a força do militarismo que deriva dos ideais de segurança interna e de defesa externa. O saber científico e a técnica (definida como a instrumentalização do saber científico) se prestam hoje a responder a qualquer indagação e à totalidade dos problemas sociais. Assim, não só a realidade é mascarada, como os problemas sociais são dissolvidos numa sociedade de participação de massa, numa “democracia de massa”, ou Estado Social.
 
IN: A RECONSTRUÇAO DA SUBJETIVIDADE (1983)





[i] Ibidem p.45.


[ii] ARENDT, H. (1981), p.9.