A cidade substituída: leitura comentada

Por Carlos Evandro Martins Eulálio

A cidade é São Luís do Maranhão e o poeta, Hindemburgo Dobal Teixeira. Publicado em 1978, o livro de poemas A cidade substituída  é dedicado a José Sarney e tem como epígrafe o verso “Num gosto naval de adeuses”, de Mário de Andrade. O livro contém 35 textos, todos em versos livres e brancos. Resgatam o cenário vivido pelo poeta na capital maranhense, quando ali esteve em 1948, por pouco tempo, como Oficial Administrativo da Estrada de Ferro São Luís – Teresina, cargo obtido por concurso público.
 Um dos motivos de H. Dobal ter escrito o livro deve-se ao fato de que, insatisfeito com a cidade, manifestara esse descontentamento ao amigo e dramaturgo Francisco Pereira da Silva que, em resposta ao poeta, através de carta datada de 28 de novembro de 1948, tentou  desfazer a má impressão do poeta: “Meu querido, conheço a cidade e não compreendo a sua insatisfação, São Luís é fonte perene. E depois, que culpa tem a cidade de ter maus versejadores? Ela é o antigo bom, eles (os versejadores, oradores e prosadores) o antigo podre. É verdade que você deve é estar no Rio [...], mas um ano, dois anos de São Luís para você acho de boa medida, a cidade lhe pagará depois com juros dobrados, veja só que terra, não sorria, não é blague não.” (Halan Silva : 2005). Desse episódio, certamente veio a lume essa grandiosa obra que resgata poeticamente a memória de uma cidade, ameaçada de aos poucos perder seus encantos e a referência do passado colonial. Elegia de São Luís é o poema de abertura do livro:

Indiferente ao movimento da vida                             Este canto não vem
um canto de sabiá                                                    de uma palmeira invisível.
se despeja triste                                                        Vem da gaiola acima da escada
sobre São Luís do Maranhão.                                   e corta a sala, o jardim, atinge a rua
Canto, pranto, lamentação de sabiá                         onde os ônibus soluçam
atravessando o dia e a noite,                                    Mais ainda: atinge tudo isto
atravessando o céu e a terra.                                   que está sendo chamado a desaparecer.

A passagem da lua,
a passagem das velas nos canais
que a maré transforma e retransforma,
a solidão das igrejas,
a ameaçada solidez destes sobrados,
nada pode vencer
a tristeza deste canto. 

 A elegia surgiu na Grécia com Calino de Éfeso (século VII a.C.), foi cultivado por poetas, como Sá de Miranda, Camões e mais tarde por alguns poetas da Arcádia Lusitana, como Bocage. É uma composição lírica de tom terno e triste. Trata-se de um poema melancólico, nostálgico, freqüentemente um lamento amoroso ou fúnebre. Na era moderna, aqui no Brasil, temos inúmeros exemplos de textos elegíacos, como os produzidos por Drummond, Vinícius de Morais, Mário Faustino e outros. A elegia de Dobal é um canto de lamentação. O poema, em versos livres, anuncia a perda dos traços paisagísticos e culturais da antiga São Luís, em meio ao progresso da cidade e às transformações urbanas que se verificam  com o passar dos tempos. Índices semânticos apontam para essa realidade nostálgica, através das expressões canto triste, pranto, passagem da lua, solidão das igrejas, ameaçada solidez dos sobrados que nada pode vencer a tristeza, lamentações do sabiá, cujo canto, agora vindo de uma gaiola e não da palmeira invisível de Gonçalves Dias, com quem o eu-lírico dialoga, chega à rua onde os ônibus soluçam.

 O poema  Araçaji ressalta o lírico-social:

São pescadores silenciosos,                                com dupla fileira de navalhas.
não cantam amores no mar.                                 Os olhos malignos que encontravam
Vão tranqüilos, vão sabendo                                os seus caminhos nas águas mornas,
que a vida é assim.                                               Não são mais nada.
Na volta deixam na areia                                      Queimados pelo sol, pelo sal das ondas
os seus troféus de pesca:                                     os pescadores passam. Não são heróis.
as cabeças dos tubarões, a humilhada                São pescadores pobres
ferocidade dos monstros.                                     sem força de mudar de vida.
Aqui estão elas: mandíbulas armadas
 
 Aracaji é uma das praias mais distantes do centro de São Luís. É, por essa razão, muito visitada pelos turistas que ali buscam sossego e privacidade. Nesse poema o autor recupera um tema de natureza social já abordado no livro O tempo conseqüente, no texto “Pescadores”, no qual o eu-lírico já constata a triste labuta dessa gente pobre, sem perspectiva de um futuro melhor, diante da impossibilidade de mudança em suas vidas. A intertextualidade aqui se verifica entre textos produzidos pelo próprio poeta.
O tom descritivo do poema ressalta imagens que se inter-relacionam: a referência às “cabeças dos tubarões”, enfatizando “a humilhada ferocidade dos monstros”, está em sintonia com a debilidade de seus pescadores pobres. O emprego do adjetivo posposto ao nome desfaz o teor afetivo de natureza piegas e instaura no poema a imagem da real e da difícil situação de uma comunidade carente de tudo e cada vez mais impotente para superar dificuldades. O texto não exalta a paisagem, mas o sofrimento do homem, em meio a  insucessos e frustrações.
 O poema Testamento destaca a figura mítica de Ana Jansen:

A um filho havido                                 Um legado
da fragilidade da carne,                       de trinta peças humanas,
Ana Jansen                                          num testamento
Fez um legado de escravos.                hoje absurdo.
    Ana Joaquina Jansen Pereira era mais conhecida por Donana Jansen, que também comparece na monumental obra de Josué Montelo, “Tambores de São Luís”. Viveu em São Luís, durante o reinado de D. Pedro II. Nascida rica, era uma comerciante poderosa que exercia forte influência na vida política, administrativa e social da cidade. Dona de muitos escravos; diz-se que os maltratava, submetendo-os a cruéis sessões de tortura. Morava num casarão da Praia Grande. O poema é mais um exemplo da linguagem substantiva de H. Dobal. Em tom narrativo, resgata um pouco a vida colonial da cidade e dessa controvertida personagem histórica de São Luís.   
 O texto Calhau é exemplo de poema descritivo de circunstância:

As dunas. Os destroços
que o mar devolve à terra.
O hotel de turismo e o horizonte
que enganou a ponte.       

 Aqui, a cidade é vista por fragmentos, como se refletidas em objetivas. A praia do Calhau situa-se a 10km do centro de São Luís. É procurada para diversas competições esportivas. Possui belas dunas recobertas  de vegetação rasteira e oferece opções noturnas de lazer. O poema, de expressão curta (uma quadra apenas), é uma característica da primeira fase do Modernismo brasileiro.
No poema a seguir, Antifénix, há uma nota de desesperança, em relação à cidade que jamais será a mesma.

Diferente, deformada,                                    estendida sobre a paz dos azulejos.             
será uma cidade                                            Uma cidade implacável                         
esquecida de si mesma.                                suplanta a velha cidade.               
Tudo terá sido inútil                                       Outra cidade                    
A brisa nos beirais,                                        implacável impõe
a glória dos casarões coloniais,                    a sua face vulgar
o úmido cheiro da noite                                 nestes largos e ladeiras
nos jasmineiros  em flor,                               neste antigo lugar.
a bandeira branca dos domingos

 Na mitologia grega, fênix é um pássaro que quando morria entrava em auto-combustão e, passado algum tempo, renascia das próprias cinzas. Através do neologismo antifênix, o poeta vaticina a implacável transformação e deformação da cidade, sem nenhuma chance de renascer das cinzas do passado. 
 A cidade substituída, poema título,  é de natureza confessional e de denúncia:

Ao lado do silencio                                                contra a beleza desta cidade.
das torres de Santo Antônio,                                Nesta praça esquecida         
um poeta anônimo prepara                                   não dura mais a memória
um sermão inútil.                                                  de Antônio Vieira e de Antônio Lobo.
Denuncio a mim mesmo                                       Toda memória vai-se perdendo.                          
a indiferença do Maranhão.                                  Sem música, sem palavras,
Falo às paredes, aos peixes,                                preparo um réquiem.      
a quem jamais repetirá as minhas palavras.        Pranteio esta cidade,
Condeno em silêncio                                            substituída por outra
os que se uniram ao tempo                                  estranha ao seu passado.

 Nesse texto, o poeta ratifica o título do livro nos últimos versos: “Pranteio esta cidade, substituída por outra estranha ao seu passado.” Além de enfatizar o descaso pela preservação da memória da cidade, o autor também denuncia a indiferença dos que concorrem para tal, impotentes diante das transformações culturais, impostas pelo processo de modernização que aos poucos vão substituindo a sua paisagem urbana.  São evocados no poema os nomes do Pe. Antônio Vieira  e de Antônio Lobo. Vieira proferiu em São Luís o Sermão de Sto. Antônio aos Peixes, em 1654, com o objetivo de louvar algumas virtudes humanas e ao mesmo tempo censurar os vícios dos colonos. Obteve do Rei a Lei de Abolição Indígena em 9-4-1655, dando a tutela dos índios aos jesuítas. Antônio Lobo é nome literário de Antônio Francisco Leal Lobo, professor, jornalista e escritor, um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras, em 1908. Suicidou-se em 24 de junho de 1916.
 A França Equinocial é o poema que se refere ao episódio da invação francesa de 8 de setembro de 1612. 

As ruas antigas vão sorvendo os ventos  
que se alongam do mar.                        
Ai caminhos da água e do vento                          
por onde vieram as caravelas da França
                     Regente
                     Charlotte
                     Saint’Anne
Trazendo um nome para entregar esta cidade
à sua existência.
Ai caravelas da rainha-regente Maria de Médicis,
Tanti facti femina dux.
A ambição do sonho,
a fracassada França Equinocial
permanece neste nome.

 Essa invasão foi comandada por Daniel de la Touche, Senhor de La Ravardière e sua expedição composta de três naus: Regente, Charlotte e Saint’Anne, em nome do Rei Menino Luís XIII da França. Logo depois mandou celebrar uma missa por ordem de Maria de Médici (viúva de Henrique IV), mãe tutora do Rei francês, celebrada no verso 1364 da Eneida de Virgílio, “tanti facti femina dux”, isto é, “o autor de fato tão grande é uma mulher”. Os franceses foram expulsos na famosa Batalha de Guaxenduba, nome das terras em frente à Ilha, em 3 de novembro de 1615, pelas tropas chefiadas por Jerônimo de Albuquerque, findando o breve sonho da França Equinocial. Destaque-se na última estrofe do poema o recurso da poesia medieval resgatado por Dobal  e recorrente em alguns de seus poemas, como “Campo Maior”, na obra O Tempo Conseqüente: “Ai campos do verde plano [...] Ai latifúndios....
 O tema da escravidão comparece em alguns poemas, como “Museu do Negro”, “Testamento”, “Ruínas”. Destacamos para comentário o texto Beco da Catarina:

Catarina Mina,                                                   grã-senhora, dona de imóveis,                       
nigra sed formosa                                              Dona de corações.                              
embeiçava os ricos reinóis.                               Catarina Rosa Pereira de Jesus               
Catarina, da beleza negra dos Minas,               Fantasma sensual
sócia dos prazeres da carne,                             subindo e descendo
alforriou-se da escravidão.                                 nas pedras de lioz destas escadarias.
A negra Catarina:

 No texto, o poeta evoca o nome da negra e ex-escrava Catarina Rosa Ferreira de Jesus, que comprou sua liberdade e tornou-se rica comerciante de farinha. O poder da sedução, mercê de sua beleza e sensualidade, deu-lhe o privilégio de morar na Praia Grande e conquistar fidalgos lusitanos. O nome do Beco é uma homenagem à Catarina, nigra sed formosa (negra, mas bela): título de uma peça musical do compositor renascentista italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina.
 Outro poema que merece destaque pela emoção e pelo tom épico e elegíaco é Lamentação de Pieter Van Der Ley no Outeiro da Cruz: 
Eu, Pieter van der Ley,                                as suas lições de bem partir, de mal partir.
soldado da Holanda                                   Aqui por perto manobram os caminhões de refrigerantes.
trazido até aqui                                           Eu não parto. O meu refrigério é apenas
na luta santa contra os papistas,               esta brisa triste trazendo os adeuses do mar.
mas também movido                                 
pelo sonho da aventura e da riqueza,        Eu, outrora chamado Pieter van der Ley,
fui morto aqui neste lugar                           espírito preso neste Outeiro da Cruz,
depois chamado Outeiro da Cruz               cumpro uma pena interminável,
em memória desta emboscada.                 expio um pecado de que não me lembro.
E aqui me tenho para sempre.                         O meu corpo de vinte anos,
Os meus derrotados camaradas regressaram.              depositado neste chão,
Eu sou o filho pródigo que os pais nunca reviram          composição que se decompôs rapidamente,
A violência do sol, o peso das chuvas,                           o meu corpo me abandonou.                          
o tempo tropical não me desgasta.                                A minha pele clara, os meus olhos claros,
Mas perdi para sempre o claro-escuro da Hollanda,      os meus músculos, os meus cabelos ruivos
os canais onde a água refletia as tabernas,                   me abandonaram.
perdi as planícies onde o gado frísio                              E  aqui me tenho: menos do que sombra.
pastava na bruma,                                                          Corpo etéreo, fantasma, alma penada,
onde o gado malhado                                                     que ninguém vê,
transformava em leite a pastagem gorda.                      que ninguém ouve,
Aqui neste Outeiro da Cruz,                                           que ninguém conhece,
hoje envolvido pela cidade,                                            neste exílio post-mortem.
passam os que procuram o aeroporto e me deixam 
 Nesse texto Dobal resgata o episódio do ataque holandês, em 25 de novembro de 1641, comandado pelo Almirante Jon Comellizon Lichthardt e o coronel Koin Anderson. Durou pouco tempo essa invasão (27 meses), pois os holandeses foram expulsos em 28 de fevereiro de 1644, nas lutas comandadas pelo Capitão-mor Teixeira de Melo, herói da reconquista do território maranhense. O texto mantém relação tensa com o narrador. É um dos textos mais significativos da obra. Poema narrativo, escrito em primeira pessoa, inspira no leitor a dor agônica do soldado holandês, morto aos vinte anos naquele combate.
 O livro A cidade substituída é todo tecido pela memória do poeta, que constrói a imagem de uma cidade ausente, impossível de ser  vivida, porque é passado.  
  
 


BIBLIOGRAFIA

DOBAL, H. Poesia reunida, 2 ed., Teresina : Oficina da Palavra, 2005.
http:www.farolweb.com.br/turismo/são Luís/index são Luís html, acessado em 10-9-2007
SILVA, Halan. As formas incompletas – apontamentos para uma biografia. Teresina : Oficina da Palavra / Instituto Dom Barreto, 2005.