A casa onde morou Ariano Suassuna

Rosele Martins

 

São Paulo - Assassinado por um cangaceiro, João Grilo, protagonista da peça Auto da Compadecida (1955), recebe autorização para ressuscitar. Mas o perdão não vem facilmente: como havia ludibriado seu algoz, além do padre, do sacristão, do bispo e do padeiro da cidade com mentiras, o personagem precisou enfrentar um julgamento, no qual Jesus, na figura de um homem negro, e o Diabo, vestido de vaqueiro, disputam sua alma.
 
Não fosse a intercessão da Virgem, o herói malandro (autodenominado “um amarelo muito safado”) padeceria no fogo eterno. Já no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), o fidalgo dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna narra sangrentas e mirabolantes epopeias medievais, ocorridas em pleno sertão, com vocabulário pitoresco, em que onças, anjos e caboclos dividem as páginas com bestas marinhas e menções aos escritores Homero e Euclides da Cunha.
 
Situações insólitas como essas, repletas de fantasia e elementos da cultura regional (a exemplo da literatura de cordel e de versos dos repentistas), caracterizam os textos de Ariano Suassuna (1927-2014), o Imperador da Pedra do Reino – a nobre condecoração ele recebeu dos organizadores de uma cavalgada que acontece anualmente em São José do Belmonte, no interior pernambucano, inspirada em lendas locais e em seu livro mais famoso.
 
Assim como as demais, a obra foi escrita à mão, no gabinete da casa na qual esse paraibano, radicado no Recife desde a adolescência, morou por mais de cinco décadas com a parceira de toda a vida, Zélia Andrade Lima.
 
“Ele era muito rigoroso e disciplinado. Acordava cedo e trabalhava de domingo a domingo. Só interrompia o ofício para ler”, conta um de seus genros, o artista plástico Alexandre Nóbrega, braço direito na tarefa de migrar o conteúdo manuscrito para o computador.
 
Uma espreguiçadeira – gênero de móvel pelo qual Ariano tinha especial predileção – deixada na sala de jantar era sua companhia na leitura do jornal, logo após o café da manhã.
 
No ambiente, decorado com móveis de jacarandá do século 19, piso de ladrilhos hidráulicos também antigos e um belo painel de azulejos, presenteado pelo amigo Francisco Brennand, o autor de Uma Mulher Vestida de Sol (1947) e O Santo e a Porca (1964) saboreava almoços com os seis filhos e os 15 netos aos domingos.
 
Mantê-los por perto, aliás, era uma de suas grandes alegrias. Tanto que vários integrantes da família moram neste mesmo lote, em outras construções, e se visitam cotidianamente. “Sou patriarcal”, declarou Ariano na reportagem publicada por CASA CLAUDIA em 1997.
 
Quando não estava lendo ou escrevendo, exercia outra atividade: ministrava aulas-espetáculo sobre a cultura popular brasileira, acompanhado de músicos e bailarinos. A última delas ocorreu cinco dias antes de encontrar Caetana, como se referia à morte, parafraseando um termo comum no sertão da Paraíba e de Pernambuco.
 
O ritmo das saídas, no entanto, diminuiu desde o ano passado, quando ficou hospitalizado para tratar dois infartos e um aneurisma cerebral. Mais recolhido, pôde concluir o livro O Jumento Sedutor, que vinha preparando há 33 anos.
 
“Fiz um pacto com Deus. Se ele achasse que o romance tinha algo de sacrílego ou de desrespeitoso, que o interrompesse pela morte”, disse o escritor numa entrevista concedida  ao jornal Folha de S.Paulo. Pelo jeito, o interesse em ver a obra pronta não era apenas terreno.
 
Refúgio povoado de lembranças carinhosas
 
O endereço eleito por Ariano, ao qual o escritor se referia como “minha fortaleza, um marco de resistência da cultura brasileira”, só poderia ser peculiar, a exemplo das histórias que ele imaginou.
 
Erguida em 1870, a construção (cuja fachada foi revestida de azulejos criados por Brennand) fica na Casa Forte, bairro de atmosfera bucólica na Zona Norte do Recife, às margens do rio Capibaribe.
 
Do portão, já se avistam esculturas de contornos oníricos moldadas por Zélia, painéis cerâmicos e mosaicos que reverenciam a religiosidade e o legado do ilustre morador, que, apesar de conhecido pelo talento com as letras, flertava com as artes plásticas – alguns de seus livros trazem ilustrações que ele mesmo desenhou.
 
Lá dentro, móveis herdados, lembranças da infância e muitos presentes, dados por filhos e amigos, preenchem os ambientes, que expressam um registro mantido com afeto na memória do autor.
 
“Assim como eu, Zélia também cresceu num engenho, em Tapera, na zona da mata pernambucana. Talvez por isso, tenhamos escolhido uma casa assim, com ar de fazenda”, afirmou ele, imperador em São José do Belmonte e aqui, em seu reino, onde viveu durante 55 anos cercado de tudo o que mais amava.
 
Publicado originalmente em Casa.com.br