A Batalha do Poder: posfácio II
Em: 12/12/2011, às 23H09
Flávio Bittencourt – exclusivo para Entretextos
(Continuação)
“(...) Flecha Azul [canoa antropomorfizada da estória infanto-juvenil de L. P. Góes intitulada “Flecha azul”] ficou feliz. Piauí [o pescador] puxou-a mais para cima da areia. Voltou à sua cabana e trouxe os filhos, um punhado, de miúdos a graúdos, uns seis.
- Que canoa legal, pai!
- Também gostei dela, filho. Vamos cuidar, pintar.
- Pinta de azul, pai. Ela só tem um restinho de azul no casco. Deve ficar linda toda azulinha. (...)”
(LÚCIA PIMENTEL GÓES, “Flecha Azul” [conto infanto-juvenil], Ed. do Brasil, 1985; ilustrações: Alice Góes, p. 25)
"(...) Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo [o Autor já havia, neste ponto da estória “O espelho” (Primeiras estórias) mencionado o objeto – a máscara – que, exibindo-se, esconde aquelaface que lhe serve de suporte] diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio 'visual' ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.
(...) Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me; olhar não-vendo. Sem ver o que, em 'meu' rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?
Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos (...).
(GUIMARÃES ROSA, Primeiras estórias / 11: "O espelho", 11ª ed., pp. 64 - 65)
"(...) nossos pensamentos efetivos, nossas crenças firmes são um elemento irremediável de nosso destino. (...)"
(JOSÉ ORTEGA Y GASSET, Em torno a Galileu - Esquema das Crises, trad. de Luiz Felipe Alves Esteves [trad. da edição espanhola de 1982, ed. Paulino Garagorri], Petrópolis, Vozes, 1989, p. 99 [1942; Curso (1933) ministrado na Universidade Central de Madri, Espanha])
"Nós cometemos um erro."
(JOHN LENNON, no Aeroporto de Londres, chegando da Índia, onde o conjunto The Beatles e auxiliares e amigos foram, entre outros afazeres profissionais e pessoais, venerar um guru: “We made a mistake”, http://kirjasto.sci.fi/lennon.htm)
Iniciamos esta segunda e última parte do Posfácio de A Batalha do Poder transcrevendo um trecho dos últimos parágrafos de um artigo de Slavoj Zizek, em que é colocado em relevo o mundo artístico da ficção científica – seara em que se movimenta, com grande desenvoltura, o experiente Miguel Carqueija –, estudado à saciedade nos casos dos paradigmáticos Solaris - um romance (de autor polonês) e dois filmes (o primeiro, soviético, e o segundo, estadunidense) -, especialmente na passagem do romance ao primeiro filme (cuja produção foi providenciada no âmbito do poder central da ex-URSS, possivelmente como resposta ao certamente pretensioso e aparentemente kitsch 2001 - Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick). O filme de A. Tarkovsky sofre, segundo aquele pensador esloveno, de uma, digamos, "inferioridade por sua leitura junguiana" (a expressão é nossa, não de Zizek, mas não foi outra coisa que Slavoj Zizek procurou transmitir):
“(...) O problema com Tarkovski é que fica claro que ele próprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do herói é apenas a externalização e/ou projeção da jornada iniciática interna rumo às profundezas de sua psique. Formando um contraste claro com isso, o livro de Lem focaliza a presença inerte e externa do planeta Solaris, dessa ‘Coisa que pensa’ (usando a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro é justamente que Solaris permanece um Outro impenetrável, sem nenhuma comunicação possível conosco. É verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questão subjacente a esse ato permanece totalmente impenetrável: por que ele o faz? Como resposta puramente mecânica? Para brincar conosco de maneira demoníaca? Para nos ajudar - ou forçar - a confrontar nossa verdade negada? (...)”.
Foi exatamente quando S. Zizek, que é um ser não-religioso, utilizou, com perspicácia e sutileza teórica invejáveis, a expressão jornada iniciática em tom nitidamente crítico. É interessante assinalar que Miguel Carqueija, que é católico praticante, recusa, a seu modo, esoterismos que nos venham a afastar de seu fé cristã. É como se Lem (escritor polonês), Zizek (teórico esloveno) e Carqueija (escritor brasileiro), por mais diferentes, teórico-ideologicamente considerando, que sejam, têm algo em comum: nenhum deles é adepto de gurus indianos, nem dos esoterismos da assim chamada “Nova Era” (New Age).
Torna-se pertinente que retornemos à leitura de Zizek, quando as menções ao que salientamos fica explícita: "(...) Sabedoria 'new age' [O Prof. S. Zizek recusa tanto os postulados de C. G. Jung, quanto as tendências comportamental-"esotéricas" da Nova Era (nota deste Posfácio; VIDE NOTA “1”, ONDE CONSTA TRANSCRIÇÃO DE TRECHO MAIOR DO MESMO TRABALHO DE S. ZIZEK)] - "A Profecia Celestina" [ed. Objetiva], de James Redfield, é exemplar no que diz respeito a esse viés antimodernista da sabedoria ‘new age’: postula como a primeira ‘nova mensagem’ que vai abrir o caminho para o ‘despertar espiritual’ da humanidade a consciência de que não existem encontros contingentes.
Prossegue Zizek: "Ou seja, como nossa energia psíquica faz parte da energia do próprio universo, que, em segredo, determina o rumo das coisas, os encontros contingentes externos sempre portam uma mensagem endereçada a nós, a nossa situação concreta. Eles ocorrem como resposta a nossas necessidades e perguntas (por exemplo, se determinado problema está me preocupando e algo inesperado acontece - um amigo que eu não via há muito tempo me faz uma visita, alguma coisa dá errado em meu trabalho, por exemplo -, esse acidente com certeza contém uma mensagem referente a meu problema) (...)”.
Cabe aqui a consideração de que, sob a perspectiva cristã/católica, Miguel Carqueija, em A Batalha do Poder, adere à cultura pop-ocidental (diferentemente, por exemplo, de The Beatles, compreendidos aqui como a quintessência da cultura pop da segunda metade do século 20, que se aproximaram da cultura milenar indiana [viajando até a Índia e decepcionando-se com o guru que, sem maior pudicícia, tentou amorosamente aproximar-se de uma jovem que venerava certo guru], exemplo, Carqueija permanece fiel aos princípios dogmático-religiosos do Vaticano).
Consideramos a referida narrativa de Carqueija como um produto da cultura de massa que logrou sucesso (literário, mas também teórico-epistemológico, digamos). Ou erramos e a narrativa de Carqueija não logrou sucesso como produto de comunicação e da cultura contemporânea, ou é possível ser católico e pop, simuntaneamente, como Miguel Carqueija nos mostra, em ato prático-literário. Essa questão não nos parece ser prosaica, trivial, nem menor (como se sabe, o Prof. Flávio René Kothe considera folhetins, romances de aventuras, estórias detetivescas, de capa-e-espada, “de Tarzan”, eróticos-“menores” (excluam-se as estórias escandalosas do Marquês de Sade e de Boccaccio dessa lista “menor”), de amores água-com-açúcar, de terror, de espionagem – e de ficção científica [quando não tiverem sido escritos por S. Lem e por outros grandes escritores que se dedicaram ao gênero (a literatura de Carqueija, segundo o nosso entendimento, situa-se na interseção entre a arte maior de Lem e os livros de bolso rapidamente construídos, apresentando-se, por conseguinte, como fenômeno a ser estudado)] e assim por diante como textos de literatura trivial).
O problema da crítica de F. R. Kothe à literatura que considera “trivial” reside no fato de, quando um Franz Kafka, apresenta uma personagem palustre (de lagoas ou pântanos) com membrana entre os dedos, a alta literatura mergulhar em procedimentos típicos da assim chamada ficção científica (ou literatura fantástica).
Além disso, observe-se o seguinte poema de Vinicius de Moraes:
“O poeta aprendiz
ELE ERA um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante.
Anos tinha dez
E asinhas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc.”
(Os melhores poemas de Vinicius de Moraes, 5ª ed., Global Editora, p. 143).
Se alguma metáfora pode ser detectada nesse poema literalmente fenomenal, quando, em A Metamorfose, de Kafka, um chinelo é lançado para matar o horrível inseto-não-metafórico da estória, fica evidente que, antes de qualquer coisa que aquele animal repelente representava, ele era... um inseto passível de estudos entomológicos!
Afirmou-se que o viés pelo qual M. Carqueija optou foi ético-religioso, mas em A Batalha do Poder, o escritor não aborda questões propriamente religosas. Pois bem, não foi outro senão Fraz Kafka quem passou a ser considerado, depois de ter sua literatura dissecada em centenas de estudos em profundidade, como um autor teológico. Vale a pena, sem dúvida, a observação de como um autor marxo-freudo-israelita, Walter Benjamin, enfrentou a questão, em seu ensaio “Franz Kafka: Zur zehnten Wiederker seines Todestages” (Franz Kafka: no décimo aniversário de sua morte):
“(...) Entre estes últimos (H. J. Shoeps, B. Rang, Groethuysen), é preciso contar também com Willy Haas, que sem dúvida formulou a respeito de Kafka (...) observações muito interessantes. Isto não o salvou de uma interpretação da obra no sentido do cliché teológico:
‘O poder superior, o reino da graça, foi representado por ele em seu grande romance O Castelo; o poder inferior, o reino do juízo e da condenação, no igualmente grande romance O Processo; O território entre ambos, o destino terrestre e suas difíceis exigências, procurou pintá-lo mediante uma severa estilização, em seu terceiro romance: América.‘ ”.
Prossegue W. Benjamin:
“O primeiro terço desta interpretação pode ser considerado, segundo Brod (Max Brod), como patrimônio comum da exegese kafkiana. Por exemplo, assim Bernhard Rang escreve:
‘Na medida em que se pode considerar o castelo como sede da graça, todos esses vãos esforços e tentativas significam, precisamente – em termos teológicos -, que a graça divina não se deixa alcançar e pressionar pelo arbítrio e a vontade do homem. A inquietude e a impaciência não fazem mais do que impedir e confundir a sublime quietude do divino’ “.
Benjamin comenta a consideração de B. Rang: “Esta interpretação, é por certo, cômoda; no entanto, à medida que a desdobramos, fica mais evidente que é insustentável. (...) Esta teologia [Benjamin havia citado, mais uma vez, W. Haas] permanece insuficiente a respeito da teodicéia de Anselmo de Canterbury e incorre em especulações bárbaras, que nem sequer se podem fazer concordar com a leitura do texto kafkiano. (...)”.
Como as novelas de Miguel Carqueija apresentam mulheres admiráveis – as heroínas (e a Faisão Verde é uma delas) –, saltemos para o momento em que Benjamin se refere às mulheres, nos romances de Kafka:
“(...) Do pântano destas experiências surgem as figuras femininas de Kafka. São criaturas palustres [criaturas que vivem em lagoas ou pântanos (nota deste Posfácio)], como Leni, que estende ‘o dedo médio e o anular da direita’, unidos entre si por uma membrana quase até a última falange’. ‘Belos tempos! – diz a ambígua Frida, ao recordar sua vida anterior –. Nunca me perguntaste sobre meu passado’ “.
Benjamin: “Isto nos leva ao obscuro seio dos tempos, onde se realiza o acoplamento ‘cuja desenfreada luxúria – segundo diz Bachofen – é aborrecida pelas puras potências da luz celestial e justifica a expressão lutae voluptates da qual se serve Arnóbio’.
“Somente a partir disto pode-se entender a técnica narrativa de Kafka. Se outros personagens do romance devem comunicar algo a K., fazem-no, ainda que se trate da coisa mais grave ou mais surpreendente, de forma incidental e como se ele, no fundo devesse sabê-lo há muito. É como se não houvesse nada novo, como se o protagonista fosse tacitamente convidado a recordar algo que escqueceu. Willy Haas interpretou o desenvolvimento de O Processo, com razão, neste sentido, ao dizer que
‘o objeto do processo, inclusive o verdadeiro protagonista deste livro incrível é o esquecimento... cuja... propriedade fundamental é a de esquecer-se de si mesmo... O esquecimento transformou-se aqui em uma figura muda – na pessoa do acusado – e em figura de intensidade grandiosa.’ (...)”. [A modernidade e os modernos (coletânea de ensaios, Biblioteca Tempo Universitário, nº 41, trad. de H. K. M. Silva, A. Brito e T. Jatobá, pp. 93 – 94; 96 – 97)]
Se Lena (personagem que, n’A Batalha do Poder, metamorfoseia-se na super-heroínaFaisão Verde) precisa esquecer-se de que é Lena, vestindo-se, também exteriormente, de algo que ela possivelmente “não é” a questão do esquecimento de si mesmo está presente na literatura de Miguel Carqueija.
Examine-se a seguinte passagem – crucial, segundo o nosso entendimento – de A Batalha do Poder:
"(...) — Rita, por favor, me traga o uniforme!
— Mas o que você vai fazer? Que poderá fazer?
— Já lhe direi. Não tenha medo! Energizei o castelo. Mas vá buscar a roupa do Faisão Verde!
Rita obedeceu correndo. Retornou logo. Lena permanecera nos controles e instrumentos de medição. Trocou rapidamente de roupa, com o auxílio de Rita. Quando terminou de ajeitar a máscara, Rita observou:
— Lena... você realmente se completa quando se torna o Faisão Verde?
— Não podemos discutir isso em outra ocasião? Temos que agir! (...)". (A Batalha do Poder, cap. 10).
Se Lena, alegando falta de tempo, não aceita discutir a metamorfose “carnavalesco-mass-mediatíca” pela qual intencionalmente passa, a reflexão fica adiada para o momento em que os leitores – nós, agora, por exemplo – desejarem (desejarmos) convocar inteligência e sensibilidade para tratar do assunto “A Faisão Verde”.
Carqueija, além de vestir sua heroína – a que luta contra a antirreligiosidade, o “comunismo” e outras (segundo Carqueija) aberrações político-teológico-sociais – de super-heroína dos quadrinhos, introduz, com sua nova novela, novamente, a questão da guerra justa, uma vez que, com a ajuda da Faisão Verde, a cristandade livra-se do câncer vermelho (ou nazinegro, se for o caso). Sendo óbvia a luta dos heróis de Carqueija contra o aborto, a eutanásia, a pena de morte, o “comunismo”, o nazismo e assim por diante, interessa-nos a luta do, digamos, herói-católico-pop (ou da heroína-mulher, no caso sob estudo) contra a cultura da Nova Era, haja vista que – também por causa de The Beatles e outros novos-gurus – há uma aproximação inconsciente do pop com as manifestações culturais New Age. Em resumo, catolicismo na cultura de massa não se restringe a discos de competentes padres-cantores, músicas de absoluto sucesso mundial como Dominique-nique-nique, freiras lutando contra o nazismo em A Noviça Rebelde [filme The Sound of Music, dirigido por Robert Wise, EUA, 1965], mídias da Santa Sé, emissoras de televisão sob o comando das altas hierarquias católicas, portais informatizados religiosos aos milhões (incluídos nesse elenco multimidiático os sites de continuadores do trabalho de quase-dissidentes, benemerentes e carismáticos, como Alziro Zarur e outros), jornais eclesiásticos de grande circulação e assim por diante.
Um ser um tanto andrógino, do bem, que defende cidadãos e cidadãs, surgido num romance de ficção científica, não é exatamente personagem inovador. Mas a Faisão Verde tem algo, simultaneamente, de maquínico e hipersensual. É – apesar da fé de seu inventor literário – alguém distante de religiões reveladas.
Neste momento é importante voltar a Zizek, que havia citado, no ensaio que vimos citando, Judith Butler, "(...) que concebe a identidade sexual como sendo produzida discursivamente pela encenação física e a sedimentação gradual. (...)".
Lena, a (quando fantasiada) Faisão Verde, não constrói uma identidade propriamente andrógina, nem com tendências homossexuais (pelo contrário, Lena gosta de homem), mas busca a identidade da super-heroína dos quadrinhos, do cinema e da literatura de mercado (na expressão de Muniz Sodré, referindo-se aos produtos escritos da cultura de massa). A literatura de Miguel Carqueija deseja ser massiva. Nesse sentido, a base religiosa (católica) sobre a qual a narrativa é construída é, digamos, "ultrapassada" por uma forma que tem traços nitidamente capitalístico-avançados. Mas o capitalismo não é um sistema político-econômico-social que se construiu ancorado na usura, pela Igreja desde sempre condenada?
Miguel Carqueija, habilmente, resolve o problema fazendo com que a Faisão Verdecontribua para a implantação de valores católicos que ele (Miguel, catolicamente turbinando a Faisão Verde) preza: defesa de animais irracionais indefesos, manutenção do sistema de governo democrático, obstáculos à pratica do aborto e assim por diante, facilidade à pregação de líderes de diversas religiões (padres, pastores evangélicos, rabinos etc.).
O fato de haver um investimento do Vaticano, por exemplo, no controle de emissoras da televisão aberta, não é sinal de que, por exemplo, valores hollywoodianos sejam aceitos pela Santa Sé.
Aí está, sob nossa perspectiva, o principal mérito da literatura miguelina: Miguel Carqueija não tem preconceito contra a erótico-semioticamente desejante cultura de massa. Como se não bastasse a surpresa que sua posição no mundo da literatura sintetiza, cabe lembrar que a moral protestante (que não condena a acumulação de capital bancário) - à qual M. Carqueija não adere - não parece, igualmente, corresponder ponto-a-ponto aos hedonismos hollywoodiano, da Riviera Francesa ou, no caso brasileiro, da festa permanente que acontece em Armação de Búzios, um balneário requintado e cosmopolita da Região dos Lagos, litoral do Estado do Rio, frequentado por modelos fotográficos, milionários, jogadores de futebol, atrizes de cinema e televisão e assim por diante.
Um autor marxista como o dramaturgo Augusto Boal enfrentou essa questão (a da super-heroína da cultura de massa), com o recurso da paródia: Jane Spitfire, um romance bem-humoradamente sarcástico, como se tivesse sido imaginado por Sig – o símbolo do semanário O Pasquim, um rato-personagem criado pelo cartunista e editor Jaguar (Sérgio Jaguaribe). O livro Jane Spitfire, aliás, foi primeiramente editado pela Editora Codecri / Pasquim (Rio), em 1977 [VIDE NOTA “2”].
Miguel Carqueija, com a muito possivelmente não-exatamente-católica Faisão Verde (que tampouco será evangélica, israelita, islamita, budista, espiritualista-kardecista, atéia, agnóstica...), convoca um ser do mundo-paralelo (semiótico, ou seja, do reino da linguagem) do capitalismo avançado para servir ao catolicismo, lá onde há uma espécie de “suspensão das religiosidades” (ou das “não-religiosidades”), que possibilita um formidável “ecumemismo” de personagens que podem transitar de crença a crença (ou de crença a não-crença; ou, ainda – por singulares conversões? – de não-creça a crença, não importa qual)...
A recusa anteriormente mencionada à ideia de Faisão Verde católica fervorosa não é uma condenação - à la patrulhas ideológicas stalinistas - aos possíveis fundamentos capitalístico-consumístico-"alienados" de uma heroína dos quadrinhos, do cinema, da televisão e da literatura de mercado. Isso porque não é Faisão Verde que frequentará missas e quermesses católicas, mas Lena, a mulher que se fantasia de faisão que é católica como Miguel.
Se pensarmos numa Faisão Verde fantasiando-se de Lena, ela não seria expulsa de uma cerimônia católica, haja vista que ela estaria vestida como as outras fiéis: A Faisão Verde é uma entidade semiótica de nosso tempo.
Voltando a S. Zizek, para conferirmos como um autor por assim dizer pós-lacaniano percebe o cristianismo:
"(...) Devemos recordar o famoso dito de Heródoto com relação à Esfinge (‘os enigmas dos antigos egípcios eram enigmas também para os próprios egípcios’), que aponta para o vínculo estreito entre o judaísmo e a psicanálise: em ambos os casos, o foco é no encontro traumático com o abismo do Outro que deseja.
“O encontro do povo judaico com seu Deus, cujo chamado impenetrável os afasta dos caminhos da rotina do cotidiano humano; o encontro da criança com o enigma do gozo do Outro. Essa característica parece distinguir o ‘paradigma’ judaico-psicanalítico não apenas de qualquer versão do paganismo e do gnosticismo (com sua ênfase sobre a autopurificação espiritual interior, sobre a virtude como a realização de nossos potenciais mais profundos) mas também, e não menos, do cristianismo. Afinal, este último não ‘supera’ o caráter de ‘Outro’ do Deus judaico por meio do princípio do amor, da reconciliação/ unificação de Deus e do homem no tornar-se homem de Deus? (...)".
A Faisão Verde não é adepta da ideologia Nova Era. Tampouco é "materialista", como o citado personagem de Dan Brown, nem exatamente católica. Sem ser personagem propriamente "infanto-juvenil, dos quadrinhos" – ainda que de algo juvenil, como ressaltou Geraldo Lima, a novela A Batalha do Poder apresente [VIDE A PRIMEIRA PARTE DESTE POSFÁCIO] –, vai simplesmente morrer quando Lena se casar com Rini. Quando a Não-Faisão-Verde se casar com seu noivo Rini num templo da Igreja Católica Apostólica Romana, naturalmente.
(Dedico este trabalho à memória de minha mãe, Fernanda Araujo Lima Bittencourt [Manaus-AM, 1918 – Rio de Janeiro-RJ, 2011], funcionária aposentada do Banco do Brasil S. A. [ex-colega de Miguel Carqueija e, como este escritor carioca, também praticante da religião Católica], que nos deixou, vitimada por causas naturais, em 1º de setembro de 2011, aos 93 anos de idade; Fernanda A. L. Bittencourt era viúva do escritor amazonense Ulysses Uchôa Bittencourt [Manaus, 1916 – Rio, 1993], meu pai.)
Notas
Nota “1” – Vale a pena que se confira, neste momento, o trecho maior do qual a passagem zizekiana foi pinçada: "(...) Assim, concluindo, vamos dar um exemplo artístico que encena essa passagem de Freud a Jung: o romance de ficção científica ‘Solaris’ [1962], de Stanislav Lem, e sua adaptação para o cinema, feita por Andrei Tarkovski em 1972. Tanto o livro quanto o filme narram a mesma história: a do psicólogo de uma agência espacial, Kelvin, que é enviado a uma nave espacial semi-abandonada que sobrevoa um planeta recém-descoberto, Solaris, onde fatos estranhos vêm acontecendo recentemente (cientistas enlouquecem, têm alucinações e se matam). Solaris é um planeta cuja superfície é oceânica, fluida e se move incessantemente.
De tempos em tempos, ela assume formas reconhecíveis, não apenas complexas estruturas geométricas, mas também corpos infantis gigantes ou edifícios humanos. Embora todas as tentativas de comunicação com o planeta fracassem, Kelvin acaba por compreender que Solaris é um cérebro gigantesco que, de alguma maneira, lê nossos pensamentos e materializa nossas fantasias mais profundas. É aqui que devemos rejeitar a leitura junguiana de ‘Solaris’: o xis da questão de Solaris não é apenas projeção-materialização dos ímpetos internos não reconhecidos do sujeito (homem) - muito mais crucial do que isso é que, para que essa ‘projeção’ possa acontecer, é preciso que a Outra Coisa impenetrável (o planeta Solaris) já exista. Assim, o verdadeiro enigma é a presença dessa Coisa.
O problema com Tarkovski é que fica claro que ele próprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do herói é apenas a externalização e/ou projeção da jornada iniciática interna rumo às profundezas de sua psique. Formando um contraste claro com isso, o livro de Lem focaliza a presença inerte e externa do planeta Solaris, dessa ‘Coisa que pensa’ (usando a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro é justamente que Solaris permanece um Outro impenetrável, sem nenhuma comunicação possível conosco. É verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questão subjacente a esse ato permanece totalmente impenetrável: por que ele o faz? Como resposta puramente mecânica? Para brincar conosco de maneira demoníaca? Para nos ajudar - ou forçar - a confrontar nos sa verdade negada?
Flutuações políticas - Esses indicativos breves deixam claro o que realmente está em questão na oposição Freud e Jung. Sim, é uma disputa entre materialismo e idealismo - só que ‘materialismo’, neste contexto, não significa naturalismo vulgar, mas a afirmativa plena da contingência radical de nosso ser. ‘Freud contra Jung’ simboliza a modernidade contra o falso obscurantismo pós-moderno. E, paradoxalmente, é o próprio ‘essencialismo’ de Jung que o expõe a flutuações políticas acidentais. No início dos anos 1930, quando Hitler chegou ao poder, Jung foi pró-nazista por um curto período: ele assumiu a presidência da Sociedade Alemã de Psicologia, para coordená-la com as exigências dos ‘novos tempos’.
Mais sinistra, porém, do que esse ‘erro’ talvez tenha sido a facilidade com que Jung mais tarde mudou sua posição e assumiu postura antinazista, usando basicamente os mesmos termos e conceitos por meio dos quais, anteriormente, tinha legitimado o nazismo."
(http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/lutaclassesjungfreud.html;
”Luta de classes na psicanálisepor Slavoj Zizek [Jornal "Folha de São Paulo", 07 de julho de 2002; “O ensaísta analisa as tensões entre modernismo e antimodernismo nas obras de Freud e Jung, do qual está sendo lançado no Brasil, pela editora Vozes, o segundo volume das ‘Cartas’ “].)
Nota “2” – Sobre Jane Spitfire, de A. Boal (primeira edição: 1977; segunda edição: Geração Editorial[Grupo Ediouro], Rio de Janeiro, 2003), vide:
http://repertorio.blogspot.com/2004/11/o-fogo-aberto-de-augusto-boal.html
[artigo “O FOGO ABERTO DE AUGUSTO BOAL” (10.11.2004) Vinícius Faustini]:
“O FOGO ABERTO DE AUGUSTO BOAL
por Vinícius Faustini
Única incursão do diretor teatral Augusto Boal na literatura de espionagem, Jane Spitfire é uma excelente paródia dos seriados de agentes secretos americanos.
A excelência de Augusto Boal na história do teatro brasileiro dispensa qualquer tipo de apresentação. Entre seus trabalhos na direção, constam peças importantíssimas nos anos 50/60, como Arena conta Zumbi e Eles não usam black-tie, além do importantíssimo show Opinião. O que poucos sabem é sobre sua participação na literatura brasileira.
Além de livros sobre teatro, dois textos autobiográficos (Milagres do Brasil e Hamlet e o filho do padeiro), e a ficção O suicida com medo da morte, Boal escreveu, em 1976, uma bem humorada sátira a seriados americanos de espionagem. Jane Spitfire alia clichês dos agentes secretos criados pelos Estados Unidos a tramas mirabolantes que surpreendem o leitor e arrancam boas gargalhadas.
A trama segue a fórmula americana de espionagem. Na pacata cidade de Milwaukee, a recatada mãe de família Janet Cartwright vive tranqüilamente com marido e filhos. Até que o dever a chama e ela se transforma na sensual espiã Jane Spitfire.
A destemida espiã tem a missão de entrar na Happilândia e, por meio da coerção e de suas artimanhas, precisa depor o governo e adequar o país ao ‘american way of life’. Os confrontos se desenvolvem, e, pouco a pouco, são reveladas as cinco fórmulas mágicas para 'pacificar' o país, mostrados em excelentes metáforas que mostram Jane Spitfire como portadora das soluções para reprimir um país não-alinhado aos interesses dos Estados Unidos.
Com um texto ágil, Augusto Boal narra a saga de Jane Spitfire na Happilândia, colocando a agente secreta em situações de perigo regadas a tiros, estratégias e um forte apelo erótico. O resultado é Jane Spitfire, a ousada incursão de Boal num universo de suspense à moda dos filmes de 007.
Lançado na época pela editora Codecri, pertencente ao jornal O Pasquim, Jane Spitfire recebeu um belo acabamento em seu relançamento, pela boa editora Geração Editorial. A nova edição deixa o livro fácil de ler, e ainda traz ilustrações que fazem o leitor imaginar o mulherão que seria a agente secreta Jane Spitfire.
Cheio de alusões ao regime militar, mordaz em delinear as maneiras como um golpe de estado se instaura no governo, Jane Spifire mostra o fogo aberto de Augusto Boal a um país que, de todas as formas, procura impor sua cultura, seus costumes e seu estilo de vida para ter os demais países como seus credores. Em tempos de guerra e sem sol do reeleito presidente americano George W. Bush, nada mais apropriado do que um livro que tenta abrir os olhos do leitor para uma tirania disfarçada, que às vezes cospe fogo para manter o mundo sob a catarse do ‘american way of life’ “.