A barca misteriosa
Ontem à noite, quando tudo já dormia
E o vento, com suspiros indecisos,
Pelas vielas mal corria,
Nenhum repouso me dava o travesseiro,
Nem a papoula, nem o que de resto
Dá sono profundo ─ a consciência tranquila.

Expulsei por fim da ideia o sono
E corri para a praia. Havia luar
E o tempo estava ameno, ─ encontrei
Homem e barco sobre a areia quente,
Sonolentos ambos, pastor e ovelha: ─
Sonolento o barco se afastou de terra.

Uma hora, talvez mesmo duas,
Ou foi um ano? ─ Então, de súbito,
Espírito e pensamentos mergulharam
Numa eterna monotonia,
E um abismo sem limites
Se abriu: ─ e tudo acabou!

─ A manhã chegou: sobre profundas negras
Está um barco que repousa, repousa...
Que aconteceu? Ouviu-se um grito, e em breve
Mais cem gritos: Que houve? Sangue? ─ ─
Nada aconteceu! Dormimos, dormimos
Todos ─ ai, tão bem! tão bem!


Friedrich Nietzsche, in Poemas de F. Nietzsche, trad. Paulo Quintela, Galaica, 1960, p. 159.