CRESCE A PROCURA NO PAÍS POR CURSOS QUE ENSINAM TÉCNICAS NARRATIVAS; NO RIO GRANDE DO SUL, PROGRAMAS TRADICIONAIS JÁ PRODUZIRAM UMA NOVA GERAÇÃO DE ESCRITORES COM "DIPLOMA DE AUTOR"

filipe Redondo/Folha Imagem
 
Cena de uma oficina de escrita criativa na Casa do Saber, em São Paulo

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

O Brasil vive a emergência de um movimento literário: o dos escritores com diploma de autor. Centros culturais com lotação esgotada e professores particulares com fila de espera caracterizam a vicejante versão brasileira da disciplina "creative writing" (escrita criativa) das universidades norte-americanas. Os resultados são semelhantes: escritores reconhecidos pela crítica e premiados nos concursos de literatura.
A Casa do Saber é uma das escolas que aderiram recentemente às oficinas de escrita criativa: as aulas começaram neste ano. Segundo o diretor Mario Vitor Santos, a escola abriu uma exceção à regra de não oferecer cursos práticos depois de discutir a proposta da professora Noemi Jaffe.
A Casa das Rosas, em São Paulo, tem suas aulas práticas lotadas. Para o poeta Frederico Barbosa, diretor dessa instituição mantida pelo Estado, a meia dúzia de oficinas acontecendo em agosto e setembro, com 30 vagas cada uma, não esgota a demanda.
Uma das atrações do período é Marcelino Freire, que mantém outra oficina em São Paulo (no espaço Barco) e recebe convites para encontros em todo o país. Marcelino foi aluno de Raimundo Carrero, pioneiro da prática em Pernambuco.
Carrero começou suas oficinas nos anos 80, trazendo para o Brasil sua experiência na Universidade de Iowa. "Até meus romances escrevo com meus alunos", relata. Para profissionais como ele, a oficina ultrapassa o clichê de que o professor aprende com os alunos; todos aprendem praticando juntos.
No Brasil, imagens como um funcionário público Machado de Assis, um diplomata Guimarães Rosa ou um jornalista Nelson Rodrigues estimulam a pensar no escritor como uma figura excepcional surgida ou sustentada em outras classes profissionais. A vivência pessoal dispensou a programação técnica.
O artista temeria o cerceamento de sua criatividade, o choque entre tradição e vanguarda, a profissionalização. Nos EUA, o choque já aconteceu e discute-se quanto a literatura do pós-guerra é marcada pelos programas universitários (leia entrevista abaixo). A classe dos escritores com diploma já domina entre os laureados com o Pulitzer, por exemplo (leia quadro ao lado).

Rasuras
Para o sociólogo Sergio Miceli, os cursos livres aparecem como um sistema paralelo, a partir da crescente quantidade de pessoas com títulos que não estão incluídas no sistema de produção cultural. Os intelectuais "tentam ensinar em cursos de grã-finos semiletrados, que procuram assuntos considerados nobres; o professor se sente valorizado porque ganha um dinheiro que demoraria muito para ganhar de outro jeito. A lógica disso é um pouco esquisita, pois é uma tentativa abreviada de transferir um sistema complicado de conhecimento".
Mas exemplos como o do Prêmio São Paulo de Literatura, concedido no início do mês, apelam em favor da "tecnicização". O prêmio principal ficou com o cearense Ronaldo Correia de Brito, médico -profissão de escritor "à moda antiga".
O autor estreante premiado foi o gaúcho Altair Martins, mestre em letras com experiência em ministrar oficinas.
O escritor mais celebrado no ano passado, Cristovão Tezza, é linguista e autor do livro didático "Oficina de Texto" -"que não é de criação estética", adverte. Tezza não pratica as oficinas de escrita criativa, mas pode ser considerado beneficiado por um treinamento especializado nas letras. "Rejeito a ideia do escritor como "profissionalizável". Mas, pensando friamente, de uns 20 anos para cá a literatura se aproximou bastante da universidade".
Uma das críticas feitas a escritores associados à academia é a de que se distanciam da realidade. Frederico Barbosa questiona a afirmação, mas apresenta outro problema. "Tezza escreveu uma tese sobre Bakhtin, mas sua obra não é distante da realidade. Milton Hatoum é um estudioso, mas sua obra não é acadêmica no sentido de "chata". O problema na academia é que há uma tendência a conflitos serem apaziguados: "Não vou falar mal do sujeito porque ele pode estar depois na minha banca.'"

 


Nos EUA, a classe dos escritores com diploma já é hegemônica entre os laureados com o Pulitzer


Diploma de autor
O escritor Evandro Affonso Ferreira teve em julho sua primeira experiência como professor de ficção, na Casa das Rosas. "Você não constrói um artista", diz à reportagem, mantendo a aura dos escritores. "O curso é um exercício de leitura, dá caminhos".
O ataque mais comum à oficina a reduz a nada mais do que um trabalho que todo intelectual já deveria fazer em casa: ler. Na pior das hipóteses, é vista como uma sessão de ajuda mútua pautada por elogios superficiais entre os alunos.
Charles Kiefer, que leciona escrita criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, diz que na academia a crítica ao texto alheio é rigorosa. "Não sou pago para ser hipócrita."
A PUC-RS, que mantém oficinas há mais de 20 anos, abriu em 2006 o eixo de escrita criativa na graduação. As turmas tiveram de ser ampliadas para dar conta da demanda. O professor Luiz Antonio de Assis Brasil, que comemora também a criação do mestrado no tema, integra com Kiefer o que pode ser visto como o atual centro nervoso das oficinas de escrita gaúchas, das quais saíram nomes como Cíntia Moscovich, Daniel Galera e Michel Laub.
Kiefer mantém uma das mais procuradas oficinas de escrita do Brasil. "Tenho mais de 1.200 pessoas na lista de espera", diz. E conjectura: "A internet é que está gerando a demanda enorme no Brasil. Todo mundo tem blog, todo mundo escreve, mas uma hora se dá conta de que precisa estudar, avançar".
"A formação do escritor inclui ler muito, conhecer a crítica e, podendo, fazer um curso de escrita", diz Assis Brasil. Para ele, editores consideram esse item na biografia do autor quando apreciam originais.
O músico, editor e autor premiado com o Jabuti de ficção Arthur Nestrovski estudou música e letras em Iowa e não participou das célebres oficinas de escrita daquela universidade, mas declara ter visto uma "convivência rica, produtiva" entre as comunidades de teoria e prática. Ele diz duvidar de que tais diplomas tenham poder de convencimento sobre o mercado brasileiro de publicação.
Veterano das oficinas, o crítico Silviano Santiago afirma que a universidade brasileira não está preparada para diplomas de graduação em escrita. "Que concurso você poderá prestar com um diploma desses?"
No fim da história, todas as personagens se obrigam a concordar que escola não faz gênio, mas pode desenvolver pessoas interessadas. Cabe ao aluno escolher o professor.
  

 

O modelo americano

PESQUISADOR DESCREVE A HISTÓRIA DAS OFICINAS DE ESCRITA NAS UNIVERSIDADES DOS EUA, QUE NÃO PARAM DE CRESCER, E DEFENDE QUE, MAIS DO QUE "FORMATAR" OS ALUNOS, OS CURSOS DÃO A ELES UM LUGAR NA SOCIEDADE

DA REDAÇÃO

Aulas práticas de literatura já viraram história nos EUA.
Em "The Program Era" (A Era dos Programas, Harvard University Press, 466 págs., US$ 35, R$ 64), Mark McGurl argumenta que não dá para compreender a literatura norte-americana do pós-guerra sem conhecer os programas universitários de escrita criativa.
Compreender essa história ajuda a identificar uma raiz de boa parte da nova literatura brasileira. A Universidade de Iowa pode ser tomada como um exemplo central. Passaram por oficinas em Iowa profissionais da escrita como Raimundo Carrero, Charles Kiefer e Affonso Romano de Sant'Anna.
Este fez nos anos 70, com Silviano Santiago, algumas das primeiras experiências do gênero em uma universidade brasileira (a PUC-RJ). Sant'Anna explica como funcionavam as coisas nos EUA.
"Havia dois conjuntos de participantes: os americanos faziam o curso de criação literária como um curso normal de graduação e pós. Tinham aula de conto, poesia, epopeia, roteiros etc. Tinham que apresentar trabalhos rotineiramente. Na parte internacional, éramos mais livres; durante nove meses, tínhamos tempo para terminar projetos que trazíamos e apenas deveríamos participar de seminários expondo nossos trabalhos."
Professor de letras na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Mark McGurl esmiuça as diferentes formas como escritores viram a relação com a universidade.
Da resignação pela necessidade de sobreviver -caso de Nabokov, que lecionava literatura em Cornell enquanto escrevia "Lolita"- às experimentações -como a ficção de hipertexto na Universidade Brown-, McGurl argumenta que o fato de vivermos uma "Era dos Programas" não é uma coisa ruim, afinal. (EGN)

 

 

 

FOLHA - A ascensão da escrita criativa é devida mais a uma disposição social ou a razões de mercado?
MARK MCGURL
- É difícil separar as duas coisas. A natureza do sistema de ensino superior nos EUA o faz muito sensível à pressão do mercado. Há um sistema universitário em que é muito fácil inovar e muitos alunos que querem estudar escrita criativa.

FOLHA - O destino da escrita criativa é se tornar tão difundida quanto as matérias de história da literatura?
MCGURL
- Hoje a história da literatura é muito maior que a escrita criativa, mas as turmas de literatura tradicionais não estão crescendo. Departamentos comuns de literatura ou teoria literária têm ficado estáveis ou mesmo levemente diminuídos nas últimas décadas, enquanto os programas de escrita criativa estão crescendo a taxas extraordinárias. Alguns dizem que há um limite no mercado. Outros perguntam se as oficinas, a partir deste momento de recessão e reorganização da economia, serão uma prioridade no futuro.

FOLHA - Quantos cursos existem nas universidades dos EUA?
MCGURL
- Cerca de 750 cursos de graduação, de aproximadamente 2.000 faculdades. Cerca de 350 cursos de pós-graduação. É claro que o mercado editorial não pode absorver tantos escritores, há um enorme excesso de oferta.

FOLHA - Que fará toda essa gente?
MCGURL
- Alguns se tornarão grandes escritores. Vão escrever poesia e prosa e ensinar poesia e prosa. Outros se tornarão escritores menos conhecidos ou professores de escrita. Para o resto, é um treinamento sem uso profissional, é uma extensão da "educação liberal".

FOLHA - Os velhos exemplos do escritor como jornalista viajado, sábio isolado ou servidor público com tempo livre... estão datados?
MCGURL
- É claro que há espaço para esses tipos de escritor. Se observar a história da literatura, especialmente nos EUA, o jornalismo tem sido a instituição-chave, com inúmeros escritores que participam do jornalismo de uma forma ou de outra. Essa opção ainda existe, mas a opção de ensinar a escrita junto com a prática da poesia ou da prosa está crescendo. Surge como uma carreira de escritor: "escrever enquanto ensina". Sempre haverá o forasteiro vindo sabe-se lá donde, mas a universidade cresceu a ponto de recentemente se tornar o centro da produção.

FOLHA - Quão norte-americana é essa tradição?
MCGURL
- O primeiro programa de pós-graduação começou nos anos 1930, a multiplicação começou nos anos 60 -por décadas, foi algo exclusivamente americano. Isso se dá em parte por conta do sistema educacional do país, mas também podemos amarrá-lo a uma tradição da expressão individual: não importa onde nasça, você pode ser o que quiser, inclusive um artista.

FOLHA - Que autores consagrados são os exemplos mais extremos de entusiasmo e descrença em relação aos programas de oficinas de texto?
MCGURL
- É mais fácil começar pela visão negativa. De Algren [autor de "O Homem do Braço de Ouro"], nos anos 60, e Kay Boyle [1902-92], nos 40 e 50, a, mais recentemente, Tom Wolfe, de "A Fogueira das Vaidades", e o contemporâneo Jonathan Franzen [de "As Correções"], todos mostraram extremo ceticismo, por vários motivos diferentes. Muitos apontam que os escritores ficaram "institucionalizados", no sentido de que não têm originalidade, copiam as ideias dos colegas de classe. Em um nível é inegável que a universidade tenha ajudado muitos grandes escritores a existir, pois deu a eles uma chance de escrever. Deu-lhes uma forma de ganhar a vida enquanto escreviam. Os defensores da escrita criativa seriam aqueles que frequentaram ou ensinaram escrita criativa. Não encontramos muitos que se levantassem para dizer "isso é ótimo". Há vergonha relacionada à ideia.

FOLHA - O sr. não menciona nenhum nome?
MCGURL
- Que eu saiba essa pessoa não existe. Há os que defendem a escrita criativa em reação aos ataques, dizendo "não, não destrói a originalidade". Mas tal defesa não é necessária porque muita gente quer fazer oficinas.

FOLHA - O exercício prático da oficina é sua única vantagem em relação a outras disciplinas?
MCGURL
- Por um lado, o jovem escritor ganha conhecimento. Ao sentar-se com colegas que leem seu texto, ele ainda obtém uma forma pequena de publicação, vê como as coisas funcionam. Se estiver em um programa famoso, como o da Universidade de Iowa ou o da Universidade Columbia, podem-se estabelecer contatos. Além disso, muitos pais de garotos de classe média não querem que eles fiquem tentando ser escritores, acham que deveriam tentar ganhar a vida de forma mais rentável. Para esses jovens, o curso é um abrigo: "Estou na faculdade!" É interessante ver que, por temor, há uma tendência a manter esses cursos dentro do departamento de inglês. Assim temos escritores lado a lado com pesquisadores. Por outro lado, há o medo do pessoal de escrita criativa de que a teoria possa arruinar a musa.
 


Sempre haverá forasteiros, mas a universidade cresceu a ponto de se tornar o centro da produção


FOLHA - Por que há resistência ao papel do aprendiz na literatura, mas não nas artes plásticas ou no teatro?
MCGURL
- Uma das maiores defesas da escrita criativa é esta: em que ela é diferente de aprender pinceladas? Tem a ver com a mitologia específica do escritor. E com uma tradição de esquecer a história da literatura -pois grupos sempre foram importantes para os escritores, aprender também. Dizem que se pode aprender a escrever em casa, sem ir à escola, que "o aprendizado deveria ser ler; depois comece a escrever". Em parte o que os alunos de escrita criativa fazem é isso: ler e escrever. Mas a formalização incomoda.

FOLHA - Quanto a literatura de hoje é "programada"?
MCGURL
- É programada, mas é preciso pensar na ideia de "criatividade programática". Precisamos superar noções românticas de criatividade -de que é inexplicável, de que vem de um lugar estranho para um escritor solitário. Instituições podem gerar programas que tenham criatividade autêntica.

FOLHA - A oficina apresenta uma receita para a respeitabilidade?
MCGURL
- Sim. Vivo em Los Angeles, onde há milhares de roteiristas. É difícil dizer "sou um roteirista". Vão perguntar que filmes você escreveu. Isso vale para o escritor. O curso permite ao sujeito dizer "tenho um diploma, portanto sou escritor".

FOLHA - Os escritores formados em oficinas logo dominarão a literatura de internet?
MCGURL
- É tentador pensar que a internet democratiza a literatura, que ter um diploma, ter contatos não sejam mais importantes. Mas o problema da internet é: quem vai prestar atenção ao que aparece, com tal volume de informações? Ainda haverá quem nos conduza a alguns sites e não a outros. Um "romance Twitter" de Thomas Pynchon eu leria -só não sei se seria bom.

 Folha de S. Paulo, 16.08.2009