90 anos de William Palha Dias
Por Oton Lustosa - especial para Entre-textos
Com esta sessão solene a Academia Piauiense de Letras comemora o aniversário natalício de William Palha Dias, atual ocupante da cadeira n° 4. Poucos têm sido os integrantes deste sodalício com o privilégio de comemorar festa de aniversário assim tão agradável e tão incomum; a falar e a sorrir entre confrades, parentes e amigos, do alto dos seus 90 anos de idade.  Pois aqui está William Palha Dias, filho de Claudionor Agusto Dias e Leonor Palha Dias, nascido em 1918, muitíssimo bem disposto  e já anunciando a festa do centenário para setembro de 2.018. Faz-se acompanhar de d. Gracy, sua querida esposa, dos filhos e dos netos.
 Nesta solenidade, a Academia Piauiense de Letras cumpre o regulamento e premia os três melhores estudos de crítica literária sobre a obra ficcional do referido escritor, em Concurso Literário lançado em homenagem aos seus 90 anos.  Muitos se lançaram à prazerosa leitura e à difícil tarefa de analisar, criticamente, o conteúdo artístico-literário dos romances Endoema, Vila de Jurema e Mulher Dama Sinhá Madama, que compôem a trilogia romântica da obra literária de William Palha Dias.
 Cuidamos, porém, da festa natalícia de um escritor, romancista, intérprete da vida, aqui ladeado por parentes, amigos, estudantes e seleta platéia de literatos. Entremos, pois, a falar, ainda que afoitamente e sem nenhum preparo crítico, de sua vida literária e de sua vasta produção intelectual.
Aprendeu a ler quando já tinha consciência prática da vida  dura do sertão, em lombo de burro a mercadejar por ínvios caminhos e longas distâncias, às voltas com jumentos, cangalhas e bruacas, como aprendiz de tropeiro e imitação de mascate. Aos vinte anos estreou em sala de aula para o exame de admissão. Já casado, prosseguiu nos estudos, formou-se advogado e se fez julgador. Peticionou e sentenciou a valer, proclamando o Direito Positivo, em homenagem e em obediência estrita à Lei.  Arguto observador da vida, se fez intérprete do fato social, por outra via, sem as amarras dos artigos, dos parágrafos e das alíneas legais, mas através da prosa ficcional, que é a reinvenção da realidade mundana. Leitor voraz, habituou-se aos livros, ao ponto de passar a escrevê-los.  Em 1968, publicou o seu primeiro romance: Endoema. Fontes Ibiapina, bem-entendido das cruezas do sertão, proclamou alvíssaras à estréia de William Palha Dias:  “Endoema é o latejo do reflexo da formação duma  unidade política em seu estado embrionário. É romance social da colonização do Piauí. Concilia, numa feliz fraternidade germana, ficção e história. (...) Com arguta capacidade criadora, numa admirável agilidade mental e perspicaz observação, Palha Dias soube idealizar, pensar, criar e desenvolver uma obra de arte que muito nos enaltece e conforta, como filhos que somos desta terra onde literatura é quase um conto de fadas.”   - foi o que disse o autor de Palha de Arroz, em homenagem àquele seu colega magistrado que mais tarde iria se tornar seu confrade na Academia Piauiense de Letras.   É sabida a preferência do escritor por esta sua narrativa de estréia.
 Julgador, às voltas com os conflitos sociais em autos de processos, o escritor William Palha Dias – que não estreou para ser romancista de um só romance -, atreveu-se, mais uma vez, a interpretar a vida sertaneja, nordestina, bem-brasileira, feita de lutas, paixões, dinheiro, fé e política.  Em 1979, publicou Vila de Jurema. É o romance que inaugura o Ciclo da Maniçoba de sua produção literária.  O saudoso acadêmico desta APL, Gerardo Majela Fortes Vasconcelos, fez profunda análise dessa bela narrativa.  Escreveu e publicou substancioso artigo, onde diz: “O livro é um primor quer pelo continente quer pelo conteúdo, denso e nítido ciclo nordestino – a seca, o canganço, o coronelismo, noção severa da honra e da família, episódio cíclico da borracha de maniçoba no Piauí. É história romanceada, atraente, vívida, um painel bem burilado, espontâneo, movimentado, descritivo, chocante na sua contundente humanidade, emocionante na beleza dos seus amores rudes, dos seus aventureiros cruéis, história e sociologia apaixonantes, urdidas com veracidade e imaginação.  (...) É bela, máscula, atraente, profundamente humana a história da Vila de Jurema, ‘perdida nos confins de um sertão bruto’, saída da criatividade, modulação dramática de William Palha Dias, com o domínio da forma, dos recursos narrativos, documental e imaginoso, sensível e lúcido na aventura histórico-social Vila de Jurema.”
 Ainda nos anos 70, publicou E o Sibarita Casou. O psiquiatra e acadêmico, também prosador, Humberto Soares Guimarães, após demorada leitura, recomendou a obra a todos quantos se interessem por compreender o que venha a ser o sibaritismo, perversão moral e sexual tratada na obra, sob o enfoque da figura de Ferdinand, o anti-herói das páginas willianas.
 Em Os Irmãos Quixaba, publicado em 1979, o romancista transfigura a história real de um crime, urdido contra a eugenia positiva, os costumes, a natureza.  O amor incestuoso de um casal de irmãos, a fuga e o desabrochar da vida infante; a morte, a prisão e o júri.  Muitos anos mais tarde, esta narrativa dramática embasaria roteiro de filme longa-metragem, a proporcionar grande alegria ao autor, que jamais imaginara que texto seu pudesse, algum dia, vir a despertar o interesse de algum cineasta.
 Mulher Dama, Sinhá Madama, romance urbano e social, publicado em 1982, linear, envolvente, que narra a ascensão social da amante, que sai da ralé, marginalizada pelo preconceito, e sobe ao posto de primeira dama, com direito a honras e mesuras, nos aposentos luxuosos do topo do poder governamental.
 Seguiram-se outros e mais outros livros de William Palha Dias, no total, a sua produção literária soma 18 livros. Toda a sua prosa é o canto nativo de sua aldeia. O vasto sertão nordestino é o seu porto seco, por isto mesmo muito seguro.  Narra as experiências da vida, por isso tão verossímil é a sua prosa, rica de linguagem regionalista e culta a um só tempo, onde o gosto pela singularidade da frase resulta evidente, sem cair no coloquial sertanejo, mas, também, sem subir às alturas nevoentas do pedantismo obsoleto.  Sua construção frasal agrega sinonímias  ao cabedal do leitor e não o leva ao dicionário recorrentemente, porque no contexto tudo resulta perfeitamente compreensível.
 Particularmente, leio a prosa de William Palha Dias, com vivo interesse.  Ao escrever Papo Amarelo, drástica solução, em 2000, pediu-me fizesse a orelha do livro, que ao lado de outras histórias sangrentas, narra a guerra fratricida dos Lustosas, Nogueiras e Granjas nos sertões de Parnaguá e Corrente.  Instigado pelo título da obra, evoquei reminiscências de minha infância, quando ouvia relatos dos mais velhos sobre o desenrolar dos barulhos no vale do Paraim. Saiu a seguinte passagem, talvez, involuntariamente, em prosa-poética: “ Velho Winchester calibre 44... Máquina para matar que a indústria americana despachou para o Terceiro Mundo e veio parar nestes sertões nordestinos. (...) Condenaram-te, ó velho rifle!   Tinhas de cumprir, também, a tua pena. Lampião, Silvino, Corisco e centenas e milhares de outros parceiros teus já pagaram o que tinham de pagar. E o fizeram com o preço da própria vida. Tu, mais afortunado, ainda resistes vivo, embora velho, num canto, carunchado, enferrujado. A tua imagem causa asco. Vives, aí no museu, para as lembranças do passado. Um passado cinzento - da cor das brenhas e dos carrascais; ou um passado vermelho - da cor da poeira e do sangue. Quem te viu... Quem te vê, ó inútil carabina! Humilham-te as pomposas figuras dos AR-15 de olho eletrônico. No pulso do destemido jagunço, abrindo estrada de fogo e de sangue, lavaste a honra ferida; garantiste a virada da eleição perdida; salvaste o rebanho do coronel das garras assassinas da canguçu mão-torta; fizeste a demarcação das terras do coronel... Ao toque do clarim, rasgando a caatinga, abriste ala para o exército revoltoso do capitão Prestes. Subiste, pois, ao píncaro da glória.  Hoje, o mais miserável ladrão de rua nem te liga, ó jeringonça pesadona, mal-amanhada. Bolo de ferro!... - é como caçoam de ti. Dentre tantos, por aí que se ocupam de temas enigmáticos, indecifráveis... E que narram histórias do Arco da Velha...  Nenhum se lembrou de ti, velha carabina de manivela perra e retesado gatilho! Porém, um sertanejo euclidiano, feito doutor e feito escritor, soube, como ninguém, transmudar em arte primorosa a tua história sangrenta... E quase sagrada... Que o digam os adeptos de Cícero Romão Batista, o santo protetor do povo jagunço. WILLIAM PALHA DIAS, o consagrado escritor piauiense que mais entende das pugnas e refregas dos sertões mafrensinos, aqui, com esta admirável obra, evoca a lendária figura do rifle papo-amarelo.”  Fui adiante, prazerosamente, me alonguei no texto, e me desincumbi da honrosa missão, a de gravar a minha modesta fala nas orelhas de obra tão significativa para a literatura piauiense.
 O nosso William Palha Dias não faria feio escrevendo ao lado dos grandes da Literatura Brasileira. Senão vejamos:
 “Lá vem ele. E gangento, pilantra: roupinha de brim amarelo, vincada a ferro; chapéu tombado de banda, lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado; relógio-de-pulso, pegador de monograma na gravata chumbadinha de vermelho. Fazenda nenhuma lhe cobra pouso; e merece comer na cozinha, com a dona da casa e as moças solteiras. é que em todo o Sertão dos Confins – e olhem que é um mundão largado de não acabar mais – não há mesmo quem não o conheça e não lhe queira muitíssimo bem.”  Este é o mineiro Mário Palmério, que foi ocupante de cadeira na Academia Brasileira de Letras, que aqui constrói o seu personagem Xixi-Piriá, mascate muito querido nas páginas de Vila dos Confins.   Agora, vejamos: “O estalido da taca sibilava no ar, mais alto do que o vascolejar reinitente da chocalheira dos animais aperreados pelos tropeiros que acabam de chegar de São Romão, conduzindo mercadorias para o fornecimento de maniçobeiros. Em meio àquela barulheira atroadora, alcandorado na cacunda de seu animal predileto, vinha Xinane-Pirrita, o mais ilustre de quantos mascates haviam pisado por aquelas carcanias.”  Este é o piauiense, de Caracol, autor de Vila de Jurema, a construir o seu personagem emblemático Xinane-Pirrita. 
 Poderia continuar fazendo outras comparações.  Li O Tronco, de Bernardo Élis; li Tocaia Grande, de Jorge Amado; li Cangaceiros e Pedra Bonita, de José Lins do Rego. Li e reli Vila de Jurema. Fiz mistura de Piauí, Paraíba, Tocantins e Bahia, e não vi o Piauí sair por baixo nessa reunião de linguagens ricas e cenas fortes, feitas de corrutelas, garimpos, tocaias, carabinas, religiosidade, paixão, política, coronelismo, traição e morte. 
 Ensina Walter Benjamin, que “(...) o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. (...) O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.”
 O narrador William Palha Dias, intérprete da vida nordestina/brasileira, é um exemplo a ser seguido por todos quantos queiram atrever-se a reiventar o mundo com tinta, papel e personagens. O conjunto de sua obra concorre, decisivamente, para tornar grande e respeitável a Literatura Piauiense. A iniciativa da Academia Piauiense de Letras ao aquiescer nessa premiação literária, como incentivo ao gosto pela prosa e pelo estudo da obra dos seus escritores, é um gesto de grande significado e de longo alcance. Comemorar o aniversário de 90 anos de William Palha Dias, com ele, a família, os amigos, rindo de felicidade pela dádiva da vida, mas falando sério sobre a arte de narrar,  é um privilégio vivido de que jamais nos esqueceremos. Viva a Academia Piauiense de Letras! Viva William Palha Dias.
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      Oração proferida pelo acadêmico OTON LUSTOSA,
      no dia 20.9.2008, por ocasião de sessão solene come-
      morativa dos 90 anos de William Palha Dias, no au-
      ditório da Academia Piauiense de Letras.
                                                                                                                   
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  1.Nota à 2ª. edição, 1988.
  2.  Nota à 2ª. edição, 1988. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política, brasiliense, 1996, p. 221.
Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política, brasiliense, 1996, p. 221.