Zé Henrique, Maria José e Josélia
Zé Henrique, Maria José e Josélia

DIÁRIO

[Zé Henrique, meu amigo e cunhado]

Elmar Carvalho

17/06/2020

 

            Ontem à noite a Fátima, por WhatsApp, recebeu um pequeno vídeo, de apenas 16 segundos, enviado pela viúva, minha irmã Maria José, em que o meu saudoso cunhado e amigo José Henrique de Andrade Paz parecia fazer uma esquete ou brevíssima performance. Parecia a imitação ou caracterização gestual de algum conhecido, mas com direito a expressões faciais sofisticadas. O vídeo é de 1997, quando ele tinha 38 anos. Está ladeado pelo seu primo Marcílio Andrade e por Hermes Vasconcelos.

            Posso dizer que ele tinha talento para fazer esse tipo de encenação, pois presenciei, em duas ou três oportunidades, ele fazer essas atuações ao sabor do improviso. Ele fazia as marcações, desenvolvia as mímicas e o gestual adequado. Com efeito, tinha um verdadeiro talento para fazer as expressões faciais apropriadas e convincentes. Como ele era espírita, posso fazer o seguinte trocadilho: ele estava atuando, mas se não estivesse, com certeza estaria “atuado”. Invoco o testemunho de José Francisco Marques, nosso amigo comum, professor e grande violonista, que também presenciou algumas dessas breves e raras performances, com que ele nos entretinha e nos causava grande admiração por esse talento não cultivado.

            Na minha adolescência, nos idos de 71, 72, por aí assim, fomos vizinhos, no início da rua do Estádio Deusdete Melo e perto do campinho ao lado do Grupo Escolar Leopoldo Pacheco, nos quais joguei muitas vezes, naqueles ditosos tempos, que os anos não trazem mais. Se não estou enganado, ele já estudava em outro estado, de forma que não nos encontrávamos com muita frequência.

Após 1975, quando já morávamos em Parnaíba, ele iniciou namoro com minha irmã, com quem veio a se casar e teve os filhos Antônio Almeida da Paz Neto (o Almeidinha ou Almeida Neto) e Josélia, casada, residente em Brasília, mãe do Henrique Neto, garoto inteligente, vivo e engraçado. A partir dessa época e até o seu falecimento, nos tornamos amigos próximos, e nos encontrávamos com certa frequência, em diferentes ocasiões, tanto em Parnaíba, como em Campo Maior e Teresina, onde passamos a morar.

Posso dizer que passei a conhecê-lo bem, pois estivemos juntos nas mais diferentes ocasiões e situações, como passeios, diversões e eventos familiares. Entabulamos longas conversas, sobre os mais diversificados assuntos, às vezes degustando uma gelada e espumante cerveja, e posso dizer o quanto ele era arguto e inteligente, sendo notável a sua curiosidade e perspicácia em torno de conhecimentos gerais, religiosos e espirituais.

Avesso a hipocrisias e demagogias, tinha uma bondade e uma simpatia inatas, que logo lhe permitiam construir duradouras e sólidas amizades. Sabia extrair nas conversas o que de melhor os interlocutores tivessem a oferecer, assim como as suas intervenções eram sempre pertinentes, instigantes, e revelavam a sua argúcia e inteligência. Era o que se pode considerar uma pessoa antenada com o que acontecia no mundo, sobretudo nas áreas da política e dos conhecimentos e descobertas científicas.

Para completar um pouco mais este breve esboço esfumaçado pelo tempo, que lhe estou a traçar, transcrevo este pequeno trecho de “Retrato de minha mãe”:

“Tinha [minha mãe, e ele também] senso de humor, embora o usasse de forma moderada, e jamais para diminuir ou ridicularizar quem quer que fosse. Certa feita, o meu saudoso cunhado Zé Henrique disse que, quando morresse, gostaria de ser um urubu. Um pouco por influência minha, creio, ele passara a admirar essas negras aves, a sua saúde, a sua missão de limpar o mundo, a sua magnífica coreografia aérea, e até mesmo o seu gingado caminhar de malandro carioca. Minha mãe, sorridente, retrucou-lhe que preferia ser um bem-te-vi, pela sua beleza e alegria. Na tarde de sua morte, ouvi o canto alegre desse passarinho, que já não ouvia há algum tempo, e tive o lampejo de que seu espírito partia para o infinito.”

Estava na minha comarca, quando recebi a notícia do grave acidente que sofrera, um quilômetro depois de Altos, quando se dirigia a Campo Maior, em sua motocicleta, à noite. Colidira com um animal que se encontrava na BR. Dois ou três dias após, recebi a impactante notícia de sua morte, ocorrida em 20/10/2005, quando ele tinha apenas 46 anos de vida, posto que nascera em 10 de agosto de 1959.

Lamentei sua morte, a morte de um bom e verdadeiro amigo. Foi uma das mortes que mais senti até hoje. De lá para cá venho “amealhando” outras perdas de pessoas queridas, como o Otaviano, o Canindé Correia, e meus pais, Rosália e Miguel, de modo que julgo oportuno transcrever estes meus versos elegíacos:  

Já não tenho epitáfios

para tantas lápides

em meu peito.

Quando fui ler, na catedral de Santo Antônio do Surubim, na Missa de Sétimo Dia, a seguinte crônica que escrevi, a pedido de Maria José, fui tomado de forte emoção, e senti dificuldade em iniciar sua leitura, pelo que fiquei com a voz embargada, sobretudo em alguns trechos:  

“Mais do que meu cunhado, era meu amigo.

Dele eu poderia dizer o que refere a velha música do Roberto Carlos: era meu amigo de fé, meu irmão, camarada. Quando foi descoberta a minha neoplasia, de que me considero curado, preocupou-se muito, e, ao contar o fato a um amigo comum, chegou a verter, emocionado, lágrimas puras, lágrimas que não envergonham.

Humberto de Campos escreveu um livro titulado Sepultando meus Mortos, no qual estão estampadas várias crônicas, em homenagem aos seus amigos que iam falecendo.  Eu, também, já me vou avolumando em laudas, por causa de muitos amigos que já foram convocados pela “indesejada das gentes”, no dizer do velho bardo Manuel Bandeira, sobre os quais escrevi. Em meu poema Eterno Retorno, afirmei que os amigos mortos me acompanham cada vez mais vivos. Zé Henrique será, agora, um desses amigos cada vez mais vivos.

Sem dúvida tinha sua cota de defeitos, como todos nós, mas eu já os havia expungido de há muito, porque suas qualidades os superavam com larga margem de vantagem.

Até sua aparente zanga, nas discussões e polêmicas que, às vezes, provocava, era apenas um artifício para apimentar a conversa e reavivar suas amizades, com o tempero da paixão e da ênfase. Após o debate, era o mesmo velho amigo de sempre, sem nenhuma mágoa, sempre prestativo, sempre disposto a fazer os favores que estivessem a seu alcance, e muitas vezes nem estavam, mas ainda assim ele os fazia. No entanto, se desconfiasse que havia, mesmo de leve, magoado o interlocutor, pedia, da maneira mais natural e simpática, desculpa ou mesmo perdão, se necessário, com o seu carisma inato e espontâneo. Se fosse convencido de que estava enganado, igualmente dava a mão à palmatória, sem nenhum constrangimento ou suscetibilidade ferida, desprovido que o era de orgulho e vaidade, embora dotado de brio e autoestima.

Muitas dessas discussões giravam em torno dos descaminhos da má política, porque Zé Henrique possuía a capacidade de se indignar contra os demagogos de plantão, contra os hipócritas que vivem de iludir a boa-fé das pessoas humildes, contra os ladrões das finanças públicas. Era um profeta legítimo, a proferir verrinas e catilinárias, em sua ira sagrada, contra os vendilhões do templo dos erários municipais, estaduais e federais.

De bom coração, generoso, algumas vezes comprava fiado no comércio onde se encontrava para dar alimento a um pobrezinho que ali chegava, de forma simples, sem empáfia e sem presunção, como prega o Evangelho.

Meu irmão Antônio José, homem maduro, chorou copiosamente, ao dar a notícia de sua morte a minha mãe. Meu filho João Miguel, um adolescente, escreveu emocionado testemunho, quando soube de seu falecimento, sobre cujo texto derramou profusas lágrimas. Essas lágrimas de um homem traquejado e de um jovem inexperto são mais eloquentes do que o mais eloquente epitáfio, e provam que Zé Henrique foi um ser humano excepcional em sua bondade e humanidade. Quem merece essas lágrimas, merece, como disse o poeta Antero do Quental, repousar na mão de Deus eternamente.

Embora não fosse um erudito, era bem informado, supinamente inteligente, de raciocínio ágil e arguto. Rapidamente apreendia e processava as informações que recebia, de modo que conversar com ele era uma ginástica mental instigante e agradável.

Parece que tinha a premonição de partir cedo deste mundo. Muitas vezes me disse isso. Perto de sua morte, como se esse presságio estivesse ainda mais forte, instruiu seu filho sobre alguns deveres e cuidados. Visitou a casa de uns amigos, onde fez questão de entrar no quarto do patriarca, falecido há pouco tempo, evocando-lhe a lembrança. Disse à viúva que não se preocupasse, porque onde o seu marido estivesse, estaria melhor do que neste planeta.

Certamente, essa afirmativa é válida também para ele; onde quer que esteja, estará melhor do que aqui, pois tinha merecimento de sobra para alcançar um bom lugar. Na tarde que antecedeu o seu desenlace, telefonou-me sobre um assunto de família, e revelou-me ter se reconciliado com uma pessoa querida, de quem estivera distanciado. Também visitou outros amigos, entre os quais o dono de um barzinho, a pretexto de perguntar se estava devendo alguma cerveja, o que me fez lembrar o episódio sublime da morte de Sócrates, que, ao tomar o cálice mortal de cicuta, pediu a um de seus amigos que pagasse um galo, que estava devendo.

Nas várias e inesquecíveis conversas que tivemos, sempre demonstrou uma grande preocupação espiritual em se tornar um homem digno, em continuamente buscar o aperfeiçoamento, em se tornar melhor, despojando-se de seus defeitos. Que eram poucos e sem gravidade, faço questão de dizê-lo. Todos são testemunhas do que afirmo.

O poeta Carlos Drummond de Andrade disse que a sua Itabira era apenas uma fotografia na parede, mas como doía. Direi, citando-me a mim mesmo, que Zé Henrique jamais será uma fotografia na parede, mas me acompanhará, em minha memória e em minha saudade, cada vez mais vivo.

Na hora da saída do féretro, do alpendre da casa paterna, onde tantas vezes estivemos em momentos felizes, seu pai lhe depôs um beijo na testa, e lhe abriu, pela derradeira vez, os grandes olhos azuis, como se dissesse: “Cuidado, rapaz, ainda continuo sendo o teu velho pai, que te ama muito!”

Reviu, pela última vez aqueles olhos azuis, que nos fitavam de forma penetrante, como se quisessem decifrar e perquirir o que ia no mais profundo de nosso ser. Os olhos eram azuis, mas o sangue e a alma eram vermelhos, como as cores guerreiras do glorioso Caiçara Esporte Clube, de que éramos torcedores.

Guerreiro do bem, do bom e do justo, foi convocado pelo Senhor, em seus inescrutáveis desígnios, para combater o bom combate nas hostes dos campos maiores dos pagos celestiais.

Relembrando os antigos filmes de bangue-bangue, exibidos no velho Cine Nazaré, que em minha memória remanesce intocável, diria a esse companheiro inesquecível:

- Hasta la vista, amigo.”

Agora o revejo novamente, falando e gesticulando, não como um fantasma, mas num vídeo, nestes sombrios e preocupantes tempos covidianos, em que ele teria sessenta anos de idade.