[Paulo Ghiraldelli jr]

Por volta de 1999 meu segundo casamento estava fracassado. Não tinha conserto. O melhor seria arrumar um terceiro. Por conta de um convite para palestrar em Teresina, consegui uma namorada, aluna do curso de filosofia da Universidade Federal. Por uns tempos, então, minha circulação pelo Norte voltou a ser prioridade (vinte anos antes ou coisa assim eu tinha tido uma namorada em Belém). Por essa via do trabalho que puxa namoro e do namoro que facilita o trabalho, eis que um dia caí em Codó!

Codó – o que é isso?

Inicialmente a melhor definição que encontrei para Codó, cidadezinha do interior do Maranhão, foi “rincão dos terreiros e de nenhuma farmácia”. Rúbia precisou de um analgésico e isso me fez batizar a cidade desse modo. Aliás, para que farmácia se há terreiro? No entanto, no dia seguinte, logo vi que Codó poderia ser definida por meio de outras expressivas frases.

Fui para lá para falar em uma faculdade de filosofia – um centro evangélico de ensino. Enorme! Produção de filósofos em massa – evangélicos! Ou melhor: tentativa de alfabetização em massa, com risco de insucesso, de modo que o interior daquele lugar sofrido pudesse ter um povo capaz de carregar a Bíblia no sovaco com alguma legitimidade formal. Nova definição de Codó: “Atenas maranhense”. Não ria, eu não disse “Atenas”, eu disse “Atenas maranhense”.

O proprietário de faculdade era um jovem pastor. Negro, sabido e rápido. Já se mostrava como um dos ricos do lugar. Sua esposa era branca, amigável, igualmente sabida e certamente filha de algum ex-rico ou ex-coronel do lugar. Juntos formavam uma dupla boa entre os mais poderosos dali, ao menos no terreno urbano. Mas estavam longe de mandar no local plenamente. O líder local era o pai do pastor, o senhor do maior terreiro de religião afro dali. Um líder religioso com poderes políticos que jamais estiveram circunscritos a Codó ou mesmo aos limites do Maranhão. Esse negro já de cabelos brancos, no estilo “Preto Velho”, tinha o título de “comendador”. Ele era nada mais nada menos que o guia espiritual de José Sarney. Tratava-se do homem que dava diretrizes religiosas internas, domésticas, para todo o clã Sarney. Digo diretrizes “internas” porque oficialmente e publicamente a família Sarney sempre se apresentou em todo tipo de missa mostrando-se mais católica que o Papa. Sarney é de fato um brasileiro nato. Mais uma definição de Codó me veio à mente: “Codó capital espiritual da República”.

Sarney talvez acredite que sua habilidade de antes que viver a política ter capacidade camaleônica para sobreviver na política, jamais teria sido possível se não pelo seu contato com o Além. Eu acredito que ele acredite! Aliás, acho que devo acreditar não só que ele acredita, mas no conteúdo de sua crença básica. Duvido que a família Sarney, ligada a um modo tão atávico de vida, teria feito parte da história do Brasil como o que sabemos senão pelas mãos de deuses. E com desculpas antecipadas à cultura afro-brasileira, eu não posso deixar de dizer: pelas mãos também dos demônios.

Sarney era da UDN, opositora de Jango, e com o Golpe de 1964 passou para a ARENA, integrando-se ao círculo do poder. Entre todas as intempéries internas ao regime militar, Sarney jamais foi posto na berlinda. Ao final do regime autoritário, quando este já não se sustentava mais por nenhuma de suas pernas e muletas, ele esteve no comando de uma dissidência do grupo ditatorial e conseguiu então, já no PMDB, ser o vice de Tancredo Neves. O mineiro faleceu e Sarney se transformou em presidente da República, líder de um partido que havia sido o opositor do regime a que ele serviu. Terminou o mandato presidencial mal das pernas, mas conseguiu permanece na política porque concorreu ao senado pelo Amapá, que precisava muitos poucos votos para ter um senador. No senado, do qual foi presidente, mostrou controlar não só oligarquias do norte, mas de vários outros lugares. Uma vez Lula presidente, colocou o seu PMDB em apoio ao ex-sindicalista, garantindo-lhe mais que a governabilidade, mas o trânsito por setores políticos centrais que jamais seriam alcançados pelo PT. Lula pós-Sarney nunca mais foi o mesmo.  Lula encontrou em Sarney mais que um verdadeiro aliado, mas um correligionário. Olhando tudo isso agora e vendo que até hoje o clã Sarney consulta o terreiro de Codó, temos então mais uma definição. Podemos falar de Codó como “o centro da teocracia brasileira”.

No momento em que escrevo, Sarney está internado no Sírio Libanês com problemas no pulmão e, inicialmente, suspeita de dengue, não confirmada, já que isso iria depor contra a saúde pública do estado. Ele já foi avisado pelos mensageiros do Além, por meio do terreiro em Codó, que a data para desencarnar foi marcada desde 2011. Pode não ser agora, mas o terreiro já se antecipou, sabiamente, ao computar a idade do homem e dizer que, a partir de 2011, tudo pode acontecer (claro!). Imagino como Sarney deve estar ansioso para, também no Além, tirar tudo que puder em benefício próprio, sem ceder nada ao local e manter-se eternamente no poder sempre acumulando, sem nunca servir. “Eternamente”, nesse caso, será literal. Sendo que Jesus tem de ser humilde e viver na pobreza, Sarney poderá fazer o que tem feito por aqui mesmo. Nada lhe acontecerá. Caso vá direto para o inferno, menos ainda será atingido.

Codó é pobre na proporção em que Sarney e seus aliados se tornaram ricos. As condições de vida do Maranhão – mesmo São Luiz – continuam sendo péssimas, enquanto que em vários estados, talvez com exceção do Rio de Janeiro, nesses últimos quarenta anos um bocado de coisa boa aconteceu. As oligarquias são assim mesmo. Em todo lugar onde se instalam nada trazem de progresso, e isso por uma razão simples, a sua existência depende do modelo de vida onde um sistema agrário deteriorado domine a indústria nunca instalada. É o lugar onde o liberalismo da Primeira República se mantém longe do positivismo (tenentismo) daquela mesma época, doutrina esta que mais tarde veio a se transformar no estranho estado paternalista associado ao populismo varguista.

Não importa que Lula se pareça hoje muito mais com Vargas ou Brizola, o modelo contrário ao manequim de Sarney. Que o governo federal tenha essa cara, tudo bem, contanto que no norte, em Codó, o que funcione seja o regime oligárquico banhado pelo liberalismo de estilo nacional, aquele que caracterizou o país oficialmente até 1930. Codó não muda, porque estando com deuses e demônios está além da vida temporal. Assim, espiritualmente o Brasil não pode mudar. Codó é então uma âncora.

2013 Paulo Ghiraldelli, 55, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ