Yasunari Kawabata

Yasunari Kawabata

 Enviado por Amelia Pais. Na foto, rcebendo o prêmio Nobel das mãos do Imperador, em 1968. Foi o primeiro escritor japonês a receber o Nobel de Literatura.

A casa das belas adormecidas

 

- Mamãe! - chamou a garota, como num grito contido. - Oh! Oh! A senhora vai embora? Por favor, perdoe-me, perdoe...

- Com o que está sonhando? É um sonho, é um sonho! - diante das palavras da garota que dormia, o velho Eguchi apertou-a ainda com mais força, tentando acordá-la. A tristeza contida na voz dela chamando pela mãe penetrou em seu coração. Seus seios estavam tão comprimidos contra o peito dele que estavam achatados. Ela estendeu os braços na direção dele. O teria confundido no sonho com sua mãe que desejava abraçar? Não. Embora adormecida, embora virgem, não havia a menor dúvida de que era uma coquete. Parecia que o velho Eguchi, em 67 anos de vida, nunca tivera a oportunidade de tocar com tamanha plenitude a pele de uma jovem. Se havia uma mitologia sensual, esta seria sua jovem heroína.

Começou a lhe parecer que não era apenas uma coquete, mas uma garota vítima de encantamento. Por isso, ela estava "viva mesmo adormecida", ou seja, sua alma adormecia profundamente, mas seu corpo, ao contrário, mantinha-se acordado em toda a sua feminilidade. Não havia nela uma alma humana, apenas um corpo de mulher. Estaria tão bem treinada para servir de companhia aos velhos a ponto de a mulher da casa anunciá-la como "experiente"?

Eguchi afrouxou o braço que apertava a garota com força, abraçou-a com carinho e ajeitou seus braços nus de modo que ela o enlaçasse. E ela o abraçou docilmente. O velho manteve-se nessa posição e permaneceu quieto. Fechou os olhos. Aquecido, sentia-se num deleite. Era quase um êxtase inconsciente. Parecia compreender o bem-estar e a felicidade sentidos pelos velhotes que freqüentavam a casa. Ali eles não sentiriam apenas o pesar da velhice, sua fealdade e miséria, mas estariam se sentindo repletos de dádiva da vida jovem. Para um homem no extremo limite da sua velhice, não haveria um momento em que pudesse se esquecer por completo de si mesmo, a não ser quando envolvido por inteiro pelo corpo da jovem mulher. No entanto, estariam os velhotes pensando que compraram sem pecado as garotas adormecidas como oferenda para satisfazê-los? Ou, então, que por causa do sentimento secreto de pecado teriam um prazer ainda maior? Completamente fora de si, o velho Eguchi esquecera que a garota era a oferenda ao sacrifício, e procurou com o pé as pontas dos pés dela. Somente ali ele ainda não havia tocado. Os dedos eram longos e moviam-se gracio-sos. As articulações, de modo semelhante às dos dedos das mãos, ora se dobravam ora se desdobravam, o que já bastava para exer-cer em Eguchi a forte sedução de mulher misteriosa. Mesmo durante o sono, ela era capaz de trocar palavras de carinho com ele por meio dos pés. Entretanto, o velho contentou-se, interpretando os movimentos dos dedos dela como os de uma música hesitante e inocente, embora sensual. E continuou por algum tempo a acompanhá-la.

Parecia que a garota estava sonhando, mas teria o sonho acabado? Talvez tenha adquirido o hábito de falar e reclamar enquanto dormia em protesto aos toques insistentes dos velhotes. Eguchi pensou nessa possibilidade. Talvez fosse apenas isso. Mesmo sem falar nada e adormecida, a garota era plenamente sensual e apta a manter um diálogo com o velho apenas por meio do seu corpo. Porém, mesmo que fossem palavras desconexas em sonho, ele queria estabelecer um diálogo com ela em viva voz. Era provável que por não estar acostumado ainda com os segredos da casa, Eguchi não conseguisse desvencilhar-se dessa esperança. Perguntando a si mesmo, perplexo, o que dizer ou que parte do corpo pressionar para que a garota lhe respondesse, ele disse:

- Não está sonhando mais? Um sonho em que a sua mãe foi embora para algum lugar? - deslizou a mão ao longo da coluna, acariciando cada vértebra. Ela sacudiu os ombros e virou de bruços. Parecia ser a posição preferida dessa garota para dormir. Seu rosto continuava voltado para o lado do velho, com a mão direita abraçando de leve o travesseiro. Ela então pousou o braço esquerdo sobre o rosto dele. No entanto, não falava mais nada. O sopro suave da sua respiração chegava-lhe quente. Mas o braço sobre o rosto de Eguchi se mexia, procurando o equilíbrio. Então, com ambas as mãos, ele colocou-o sobre os seus olhos. As pontas das unhas compridas da garota arranharam de leve o lóbulo da orelha dele. A articulação do pulso dobrava-se sobre a pálpebra direita de Eguchi, de forma que a mesma ficou coberta com a parte mais fina do antebraço. Desejando conservar a posição, o velho apertou a mão da garota sobre seus olhos. O cheiro da pele dela penetrava-lhe os globos oculares e lhe proporcionava novas e fartas fantasias. Era bem nessa época do ano que duas ou três flores de peônia de inverno, banhadas pelo sol tépido como de um dia de primavera, floresciam ao pé do alto muro de pedras do velho templo da região de Yamato, e que sazanka* brancos cobriam amplamente o jardim até a beira do corredor externo do pavilhão Shisendo, onde homenageiam-se os poe-tas. Também, mais tarde, na primavera em Nara, as flores de ashibi** e as glicínias, além das camélias despetaladas, estariam em pleno florescimento no Templo das Camélias.

 

* Arbusto nativo do Japão, da família das teáceas, a mesma das camélias. Enquanto estas florescem no início da primavera, os sazanka, o fazem no outono. (N.T.)
**Arbusto da família da azálea, com flores brancas miúdas em cachos. (N.T.)

 

O País das Neves

 

Shimamura movia a mão esquerda, dobrando e estendendo o dedo indicador de diversas maneiras, não se conformando com o fato de que, no final das contas, só esse dedo guardava a memória crua da mulher com a qual estava indo se encontrar. Quanto mais se afobava em resgatar com clareza a lembrança dela, mais se perdia em meio à falta de confiança na memória escorregadia e fugidia. Somente esse dedo ainda parecia umedecido pela sensação de tocar a mulher, atraindo-o para junto dela num lugar tão distante. Aproximou o dedo do nariz, cheirou-o e depois passou-o na janela embaçada. Um olho de mulher apareceu nítido e claro à sua frente. Ele se assustou e quase gritou, mas isso porque seu pensamento estava longe. Ao cair em si, viu que aquilo era apenas o reflexo da mulher que estava do outro lado. Lá fora, a noite caía, e o interior do trem estava iluminado. Com isso, formara-se um espelho na janela, que, embaçado pelo vapor do aquecedor, não existira até que ele limpasse o vidro com o dedo.

Embora o olho da moça fosse estranhamente belo, Shima-mura fingiu apreciar a paisagem daquele entar-decer, simu-lando uma nostalgia da viagem e, ao aproximar o rosto da janela, limpou com a mão o resto do vapor.

A moça, levemente curvada, olhava atenta para o homem deitado à sua frente. Pela força que colocava nos ombros, os olhos, um tanto tensos, nem piscavam, e Shimamura entendeu aquilo como sinal de atenção. O homem estava deitado com o travesseiro apoiado na janela e as pernas do-bradas. Ali era a terceira classe. Como o assento deles não ficava exatamente ao lado do de Shima-mura, mas na fila da frente, do outro lado do corredor, o rosto do homem só podia ser visto pela janela espelhada, até a altura da orelha. A moça estava na diagonal, de frente para Shimamura, e assim ele até poderia olhá-la diretamente. Quando embarcaram no trem, ele ficara surpreso com a beleza da moça, que parecia invadi-lo com um suave frescor, mas baixou os olhos e viu a mão pálida do homem segurar firme a dela, e teve a impressão de que não deveria olhar mais na direção dos dois.

A fisionomia do homem no reflexo do vidro era de uma serenidade que parecia influenciada pela única visão que tinha, a do colo da moça. Mesmo fraco, sua baixa resistência física fazia pairar uma doce harmonia no ar. Uma ponta do seu cachecol servia como travesseiro, e a outra cobria-lhe bem a boca e, subindo um pouco mais, recobria as maçãs do rosto, parecendo uma máscara que volta e meia afrouxava e caía sobre o nariz. Antes mesmo que o homem movesse os olhos na direção da moça, ela já ajeitava o cachecol carinhosamente. Os dois repetiram esses gestos uma infinidade de vezes, a ponto de incomodar Shimamura, que apenas observava. De vez em quando, a barra do sobretudo que cobria as pernas do homem abria-se e ficava pendurada. A moça logo percebia e a arrumava. Tudo isso era feito com tamanha naturalidade que eles pareciam ir para um lugar infinitamente longe, esquecendo-se, daquela maneira, do que a distância significa. Por isso, Shimamura não sentia a dor de assistir a algo triste, mas parecia-lhe que estava vendo o desenrolar de um sonho. Talvez porque tudo aquilo se passasse dentro daquele estranho espelho.

No fundo do espelho, corria a paisagem do entardecer, isto é, o que se via através do vidro e o que se refletia no espelho moviam-se como imagens sobrepostas de um filme. Os personagens e o cenário não tinham nenhuma relação entre si. Além disso, sendo eles de uma fugacidade trans-lúcida, e a paisagem de uma fluidez vaga de cair de tarde, a fusão de ambos desenhava um mundo simbólico. Particularmente, quando os últimos raios de sol da mata iluminaram em cheio o rosto da moça, Shimamura chegou a sentir o coração palpitar diante daquela beleza inexprimível.

O céu das montanhas mais distantes ainda guardava os resquícios da vermelhidão do pôr-do-sol. Por isso, bem ao longe, os contornos da paisagem através do vidro da janela ainda continuavam nítidos, mas já sem cor, e as montanhas infinitamente monótonas pareciam ainda mais triviais. Por não haver nada de mais atraente, tudo aquilo tornava-se um imenso fluxo de emoção anuviada, obviamente porque ele imaginava o rosto da moça flutuando nesse quadro. Não era possível ver o outro lado da janela na parte em que a figura dela se refletia, mas como a paisagem do entardecer se movia ao redor do contorno da moça, o rosto dela também lhe parecia translúcido. Se o era ou não, ele não foi capaz de distinguir, pois lhe parecia que a paisagem do crepúsculo que continuava a passar por trás do seu rosto estava em frente a ele.

Como o interior do trem não era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. Ele não refletia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer.

Foi nesse momento que os raios de sol, já tênues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta, forte o bastante para ofuscar a imagem refletida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para iluminá-lo. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno de sua pequena pupila foi se iluminando, como se os olhos da moça e a luz se sobrepusessem, seus olhos se tornaram um vaga-lume misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde.