Visão do Paraíso

Rogério Newton - especial para o Entretextos

Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, foi encenada em 1960, no Teatro de Arena (SP), com direção de José Renato, principal fundador daquela casa de espetáculos que – dizem – revolucionou a forma de se fazer teatro no Brasil. Segundo Décio de Almeida Prado, a peça faz parte de um conjunto de obras responsáveis pela renovação do teatro brasileiro, ao lado de A Moratória (1955),de Jorge Andrade, o Auto da Compadecida (1956), de Ariano Suassuna,Eles não Usam Black-Tie (1958), de Gianfrancesco Garnieri,Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Viana Filho,eO Pagador de Promessas (1960), de Dias Gomes. Por renovação do teatro brasileiro, entenda-se a ruptura com a lógica do teatro feito para entretenimento burguês, ruptura essa ocorrida dentro de um processo de renovação artística iniciado na década de 1920, acentuado nas décadas seguintes.

No fluxo das tendências políticas e culturais dos anos 1950 e 1960 que reivindicavam a participação ativa de intelectuais e artistas nos destinos da sociedade, O Teatro de Arena se inseriu, desde sua criação, num contexto de arte engajada, nitidamente de esquerda, em que o aspecto estético não era ignorado, tampouco desprezado e muito menos dissociado do panorama social em que o teatro deve se integrar. Mas, na acepção de Décio de Almeida Prado, no Arena, a tradição revolucionária marxista vinhaem primeiro lugar, o teatro em segundo.
 
Em que pese o viés político esquerdizante ter aparentemente sobrepujado o estético, Revolução na América do Sul é uma peça que pode ser lida com proveito nos dias de hoje, principalmente nesse período de eleições para presidente e para governadores de alguns Estados. Conta a historia de José da Silva, operário, que perde o emprego após aumento do salário mínimo. Durante toda a peça, ele permanece desempregado e faminto, até o final, quando um político lhe dá comida e ele morre entupido. Seu principal amigo, Zequinha Tapioca, mais informado e esperto que José, traz o tema da revolução como única saída possível para as agruras da vida que ambos atravessam, mas, na primeira oportunidade, trai a revolução, vende-se a um político rico e passa a praticar política suja.
 
Sem ter, a rigor, nenhum personagem virtuoso - nem mesmo o protagonista José da Silva, fraco, passivo e ingênuo -, a classe política é talvez o principal alvo crítico da peça. Todos os políticos são corruptos, egoístas e traiçoeiros, atendendo a um dito popular muito em voga na época, segundo o qual o essencial é ganhar as eleições, não decepcionar os amigos e iludir o povo. Ao mesmo tempo, outras questões são abordadas, sempre de forma ácida, tais como dependência econômica doBrasil, país periférico, alto custo de vida, inflação, fome, tortura, interesses escusos da grande imprensa, além de outros. Nem mesmo o Anjo da Guarda se salva: é ele quem cobra royalties para as empresas multinacionais e está sempre ao lado do Milionário.
 
Do ponto de vista formal, Revolução na América do Sul apresenta alguns aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, a encenação não foi feita no palco italiano, o preferido do gênero dramático tradicional e do teatro burguês, mas na arena, que, entre outras coisas, reduz o distanciamento entre palco e plateia e aumenta as possibilidades de utilização do espaço cênico; já na época usada nos Estados Unidos e Europa, era uma novidade no Brasil. Em segundo lugar, praticamente não há cenário e os atores fazem máxima economia na utilização de objetos em cena. Em terceiro lugar, a linguagem é próxima ao falar coloquial, sem rebuscamentos, e remete ao uso das formas de expressão e de compreensão populares; o uso de músicas cantadas por personagens acentuam a comunicabilidade que a linguagem simples traz. Em quarto lugar, a estruturaçãoda peça dádinamismo às cenas e aos personagens, além de romper um pouco com a linearidade cronológica tão cara ao gênero dramático; embora a trajetória do protagonista e de outros personagens sejam identificadas facilmente, a sucessão das cenas não atende a uma rigidez linear, e pode-se dizer que há um ensaio do uso da justaposição, completando a atmosfera anárquica que o autor quis dar à peça, em termos de uso dos elementoscênicos. Esseconjunto de características atende à intencionalidade crítica, que não se reduz à temática, mas inclui o usodos recursos formais mencionados, que, de certa forma, ainda eram uma “novidade” para muitas produções do teatro então praticado no Brasil.
 
Humor, ironia enonsense são usados do começo ao fim. Já no prólogo, o Narrador afirma: “Somos uma ilha / cercada de imperialistas / por todos os lados / menos por um / que nos leva a fazer graça”. Mas não se trata de chamar de comédia essa peça, que, aliás, tem um final trágico: a morte de José da Silva. O tom crítico não impede Boal de reconhecer, na Explicação que precede o texto dramático: “Sei que existem políticos honestos, como não ignoro alguns pontos necessários na introdução do capital estrangeiro. Mas não foi sobre isso que me dispus a falar (...) Eu quis apenas fotografar o desastre”.
 
E quando a opção é “fotografar o desastre”, é natural que se fique num beco sem saída, onde nem mesmo a revolução é uma luz no fim do túnel. Aliás, é impossível não fazer uma relação com a Revolução Cubana, ocorrida no ano anterior, mas nem esse exemplo histórico resolve o problema, antes o acentua. Cumprindo certo didatismo, que em geral o teatro político possui, a peça tem um final brechtiano, convoca os espectadores à ação, embora de forma um tanto vaga. Afirma o Narrador: “José é um que morreu. / Mas você ainda não. / Aqui acaba a Revolução. / Lá fora começa a vida; / e a vida é compreender. / Ide embora, ide viver”.
 
Disse no início que Revolução na América do Sul ainda pode ser lida com proveito. Poderia ser montada hoje, meio século depois, com adaptações necessárias, para ampliar a percepção política do momento atual, em que há uma disputa eleitoral onde, aparentemente, ideias e práticasnão escapam ao trivial do ramerrão televisivo.
 
Com muito menos alcance que a TV e a Internet, o teatro ainda é um meio de se discutir graves questões do nosso tempo, que a estética e a política podem ajudar a esclarecer. Claro que, como diz Hans-ThiesLehmann, não basta só a temática para caracterizar o teatro político: é necessário forma inovadora e aguda percepção da realidade, que, aliás, parece apontar para a desejabilidade das eleições e dos sistemas democráticos, pelo menos no contexto ocidental. 
 
Seja como for, parao teatro e a política, e também para desespero de muitos de nós, o problema-chave permanece. Segundo Edgar Morin, trata-se de refletir sobre a pergunta: como agir em proveito da espécie humana? Isso passa, entre outras coisas, pela recuperação do verdadeiro significado da ação política, que não se resume à escolha de governantes ou à busca de um sistema de governo. Outros mundos são possíveis. Não nos resta somente fotografar o desastre.