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Por Herasmo Braga

Muito das construções de sentidos e significados que atribuímos aos seres, às coisas e aos sentimentos é resultado da maneira como as encaramos. Pensando assim, ao tomarmos a Literatura, não poderia ser diferente. Da forma como se concebe a interpretação, obviamente, estará traçado como percebo o texto ficcional. Nesse caso, somos daqueles que advogam a produção literária ir além de mero aspecto cognitivo. Para nós, os grandes textos literários nos elevam às mais diferentes percepções do mundo, das pessoas, por meio não só da sua linguagem, como também, pela subjetividade das personagens. Desse modo, as personagens têm muito mais a nos despertar do que apenas presenças estruturais nas narrativas.

Quando Paul Ricoeur em O si mesmo como outro, concebe o texto literário como laboratório de experiências, Walter Benjamin em conhecido ensaio denominado O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, expressa-se: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”; Ortega y Gasset em Meditações do Quixote, enuncia-nos: “Quem quiser nos ensinar uma verdade, que nos situe de modo que a descubramos nós”; Heidegger, em um dos seus cursos Lógica como pergunta pela essência da linguagem, de 1934, diz-nos: “O expandir-se próprio (Das Übergreifen selbst) é o futuro. Não experimentamos o tempo como quadro indiferente, mas como potência que sustenta nossa própria essência, como tradição que nos conduz, a nós mesmos, para adiante em nossa tarefa”. Assim, como resultado deste conjunto de enunciados, podemos perceber a presença da potencialidade da linguagem como meio de descoberta de si pelos outros. Em consonância, como apreendemos os significativos textos literários, deparamo-nos por meio da Literatura com as fontes das experiências, dos tempos, da coletividade, do desvelar-se por caminhos sugestivos, do expandir-se na compreensão do mundo e de entendimento do ser aí nele.

Importante nos ater que há aspectos em nosso meio cotidiano, real, imaginário, que nos passam desapercebidos ou mesmo tomamos como alheios. Por exemplo, acreditar que a ficção só existe em textos literários e estes por sua vez nos servem apenas para entreter. Pensar que somos constituídos por narrativas, sejam elas reais ou ficcionais, ficcionalizamos o tempo todo no nosso cotidiano, não constituem motes de pensamentos. Assim, não temos consciência da potência das narrativas e das construções ficcionais em nossas subjetividades e nas nossas ações na vida. Menos ainda, convivemos com a ideia de que as personagens muito nos dizem sobre nós e têm muito de nós nelas.

Podemos considerar ingênuo aqueles que consideram as personagens apenas como um elemento de composição de uma narrativa sendo fruto da imaginação criativa de um autor. Escapa-nos a compreensão de que a complexidade humana incide como substância para feituras das personagens. Isso acontece porque são os seres reais tomados como base e depois refratados para o mundo verossímil. Essa ideia não é algo apenas digressivo, formulado por uma mente romântica, mas advém de toda uma tradição de compreensão de reconhecimento desta interface entre seres reais e personagens. Podemos ilustrar com a observação de Erich Auerbach em Mimeses, especificamente, último texto do livro denominado A Meia Marrom, quando nos diz: “A intenção de aproximação da realidade autêntica e objetiva mediante muitas impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas, em diferentes instantes, é essencial para o processo moderno que estamos considerando”. O processo ao qual se refere Auerbach é de elaboração do romance, e ele destaca essa aproximação entre realidade e ficção e pluralidades de subjetividades expressas nos enredos por meio das personagens, em que cada uma terá a sua consciência enquanto ser apresentada. 

Assim, quando se diz que a filosofia atua como exercício de compreensão do mundo, que ela nos ilumina na vida, a literatura não se distancia desta premissa. A literatura nos proporciona por meio das confluências de experiências nossas com as personagens um encontrar-se em mundos pelos olhos, vidas, sentimentos, vivências destes seres compositivos dos enredos, através das personagens que realizamos as leituras e aprendizagens das subjetividades.

O grande escritor peruano Mário Vargas Llosa (que se diferencia e muito do político) desvenda todo o seu fascínio por uma grande personagem da literatura: Emma Bovary. Para ela dedica livro em que são explorados não só a grande admiração, mas os motivos tamanhos em A Orgia Perpétua. Destaca entre as importantes correspondências de Flaubert com Louise a de janeiro de 1854, na qual expressa: “Chaque oeuvre à faire a as poétique em soi, quíl faut trouver”, ao enunciar que cada obra tem a sua poética, e a busca da compreensão dela constitui algo indispensável para qualquer produção realizada. Dentro desta composição temos as personagens que, como nos refere Franklin Oliveira no livro A Dança das Letras, em especial no ensaio Caminhos para o contemporâneo, diz-nos: “O melhor método para definir as tendências de uma literatura está em saber como se comportam as personagens dos romances que ela é capaz de produzir”. Destarte, ao dialogarmos com as duas observações do romancista e do crítico, fica mais do que evidenciada a relevância da personagem não só para o enredo, como também para a constituição poética da obra e até mesmo para a compreensão dos aspectos macro relacionados à literatura no tocante a tendências, estilos e sistemas literários.

Na realização dos estudos acerca das personagens, destacamos a interessante empreitada realizada por José Luiz Passos em Machado de Assis: O Romance com Pessoas, que nos dirá: “As almas dos personagens machadianos são resultantes de definições propriamente morais, reveladas por descrições de substâncias particulares a cada sujeito; substâncias que são atualizadas pela própria ação desses indivíduos, pelo que fazem e falam do seu mundo e dos outros”. Em consonância com o que havíamos dito em relação à elaboração das substâncias constitutivas das personagens, é dos sujeitos reais que o autor irá buscar. É na leitura atenciosa e cuidadosa das condutas humanas, pensamentos, ações e imaginário que os grandes escritores irão se fundamentar para a formulação deles. Interessante, quando esses mundos subjetivos são levados para o campo da intriga, no desenvolvimento do enredo, as personagens vão ganhando experiências ao longo da narrativa e vão se reconfigurando dentro do universo ficcional, ao tempo em que diante dos nossos olhos estaremos imersos, compartilhando das suas experiências e somando as nossas em um mecanismo interativo que, quando corrompido, alerta-nos Ortega y Gasset em Meditações do Quixote, “a inconexão é o aniquilamento”. Desta maneira, se algo acontece no compartilhamento de vivências entre os sujeitos (reais) leitores e os personagens (sujeitos ficcionalizados) em que, se não perscruta na narrativa, de nada teria valia a continuação deste momento, pois o aspecto meramente informativo diante da trama não apresenta relevância alguma.

No mundo dos relativismos contemporâneos, em que o apegar-se a qualquer forma de tradição é logo visto como algo conservador e anacrônico, pois a autorreferencialidade e os modelos de arte representativos, independente das suas qualidades estéticas, é o que deve predominar em todos os meios artísticos, da crítica, e a interpretação por sua vez deve ser sempre elogiosa, por maior bizarrice e incompatibilidade com o sentimento de arte propriamente dito, temos a consciência de irmos na contramão desta padronização rasa em torno do mundo das produções artísticas. Nesse sentido, tomamos as grandes narrativas como as detentoras entre seus elementos de composição a presença de personagens fortes e significativas e não meros sujeitos doutrinários de manifestações panfletárias nos enredos, como acontece em obras que adotam esses elementos nas suas composições. Nestas significativas produções literárias, que não necessariamente se encontram apenas em obras do passado, como também, em produções contemporâneas relevantes como dos escritores Milton Hatoum, Sérgio Sant’anna, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Assis Brasil, Francisco Dantas e tantos outros, percebemos a elaboração de grandes personagens que fazem as marcas do escritor desaparecer e o personagens bastear o enredo. Sobre esta questão, enuncia-nos Auerbach em Mimeses: “O escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência das personagens do romance”, isso só é possível diante de personagens densas como Emma Bovary, e mesmo em narrativas em primeira pessoa como em Dom Casmurro, Bentinho apresenta as fortalezas de Capitu, levado pelo ciúmes e pela tentativa de acusação, não consegue cravar propriamente a traição, pois se perde diante não só dos encantos e dos olhos de ressaca, não obstante a personalidade forte de Capitu refletida nas suas subjetividades. Como destaca José Luiz dos Passos em relação às virtudes e influências da escrita machadiana: “Machado trouxe para o romance latino-americano a ideia da interioridade, de mundos habitados por consciências profundas. Seus romances armam vidas mais plausíveis, fazendo-as recorrer a outras vidas de ficção. Ele criou pessoas mais complexas porque incorporou aos seus protagonistas a habilidade do disfarce, a linguagem da falsidade e o sentido comezinho da contradição involuntária”. Esse criar centra-se, a nosso ver, nas observações dos sujeitos. Naquilo perceptível apenas para um observador onisciente que, mesmo sem permissão ou qualquer outra habilidade fora do âmbito da leitura das almas dos seres e de maneira criativa, estetiza-os em narrativas que atravessaram os tempos com as inscrições destas imaterialidades captadas.

Essa maneira de refração dos seres para as produções ficcionais e quando criado o mundo verossímil, as personagens passam a ganhar e desenvolver suas consciências, e no andamento deste processo acentuam-se as subjetividades sem interferências da escrita madura do escritor ou de qualquer outra presença alheia ao mundo elaborado e nas confluências da intriga marcadas pelos embates, passagens e transformações ao longo dos tempos. Percebemos que essas mudanças em nada diferem entre os sujeitos reais e ficcionais. Sob a égide destas ideias, nos acrescentará Auerbach em relação às personagens e suas consciências: “motivo casual que desencadeia os processos de consciência; reprodução natural ou, se quiser, até naturalista dos mesmos na sua liberdade, não limitada por qualquer intenção nem por qualquer objeto determinado; elaboração do contraste entre tempo “exterior” e tempo “interior””. Nesse exercício de liberdade de composição e de vivenciamentos pelas subjetividades, nos é permitido alargar nossos horizontes, e não ocorre qualquer limitação desta mesma expansão nas personagens.

Ressaltamos que, mediante um mundo hodierno onde tudo se desconfigura, de legitimações, de pós-verdades, em que nada parece ser como pensamos um dia, não ousamos ou deliramos em pautar que a realidade é uma ficção. Temos a retidão em afirmar as inúmeras possibilidades de vivências e aprendizagens que as produções literárias podem nos trazer para tornar as nossas realidades mais amplas de sentidos e realizações através das experiências que compartilhamos com os textos. Corroboramos ser isso possível devido, como evidenciamos, ao trabalho de observador onisciente da realidade, em que os grandes escritores retiram as substâncias para suas escritas. Mário Vargas Llosa também nos enunciará algo neste sentido: “No escritor existe um desdobramento constante, que nele coexistem dois homens: o que vive e o que olha o outro viver, o que padece e o que observa esse padecimento para usá-lo. Essa duplicidade do romancista, esse viver e repartir a experiência humana, e ao mesmo tempo ser um frio e ciumento explorador da vida própria e alheia” e, ao associarmos com as assertivas de José Luiz Passos, de que “só ao dar-se conta de si pode uma pessoa dirigir a sua vida imaginando modos de ser diferente, redefinindo-se frente aos demais”, teremos, portanto, nesta similitude entre criação, observação, compartilhamento, significações, autor, narrador, personagens, leitor, as catarses não só cognitivas, mas formativas de significações nos sujeitos. Mediante esses mesmos processos, até mesmo o porquê da relevância das narrativas ficcionais torna-se evidente. Entendimentos que corroboram essa interpendência entre nós e as personagens residem também na percepção de que o outro é quem nos toma por factual. É nas ações do outro que aprendemos. É para o outro que existimos, seja de maneira ficcional ou real. 

Destarte, quando Franklin Oliveira em outro ensaio, Proust, nos entoa: “a vida humana somente adquire significado quando vivida sub specie aesthetica” e, em outro momento, ao tratar de Proust e Thomas Mann: “ambos revelam que a arte anuncia a instauração de uma nova ordem, em vez de confirmar a ordem estabelecida, ambos mostram que a autenticidade da vida humana está na veritas aesthetica, e não na intranscendência das ‘verdades’ que empobrecem e aviltam o homem, cancelando-lhe as possibilidades de perfectibilidade”, faz-nos perceber que todo esse conjunto transformador e qualificador do homem, da sua imaginação, das subjetividades e percepções diante de si, dos outros, do mundo, tem as artes e em especial para a nossa abordagem, o texto literário através, principalmente, das personagens, em que nos vemos nelas e somos vistos por elas. Na interação das subjetividades reais e ficcionais por meio das vivências reais, estéticas, imaginárias, criativas, factuais, é que torna não só nosso entendimento da vida e das suas possibilidades mais amplas, mas até mesmo a presença efetiva de sentidos.

Portanto, diante de todos estes aspectos mediados pelas personagens, pelas suas experiências, pelas suas ações, é que a junção entre a vida e a estética não só dialoga, como complementa-se em torno de nós enquanto indivíduos a ser reconfigurados e nosso estar aí no mundo possa ser algo valorativo.