VIDA IN VITRO
Por Elmar Carvalho Em: 11/04/2012, às 03H33
ELMAR CARVALHO
andavas pelas ruas de outrora
à procura de ti mesmo
que se encontrava aos pedaços
bêbedo nos bares
aos trancos e barrancos
se arrastando pelos lupanares
tortuosamente andando
pelas ruas tortas.
eras infante e juntavas varapaus
no sonho maluco de tocares
a lua cheia que depressa minguava.
levantaste a túnica da freira
não por sacrilégio ou impudência
mas apenas para constatares se
ela possuía duas pernas e dois
seios como todas as mulheres.
eras infante e quebraste
o joão teimoso, não por maldade,
mas para descobrir o misterioso
mecanismo de sua teimosia.
não, não eras doido, não eras lúcido,
eras apenas um translúcido menino.
escondias tuas vergonhas, tuas frustrações
e teus medos, como todos nós, como se esconde
lixo debaixo dos tapetes de luxo.
recordas a menina que te golpeou
com um não, apenas por capricho e maldade.
recordas a garota que te amava
e que desdenhavas talvez por capricho ou vingança.
eras poeta e criaste uma quimérica
amada imortal e imaginária, inatingível
em sua torre de marfim.
ela talvez também te quisesse,
mas a fizeste intocável.
enternecido, lembras-te da empregadinha
que bolinaste, e que por bondade, amor
ou desejo não te denunciou, com alaridos
e gritos histéricos, estridentes.
eras jovem e te julgavas alexandre
e bonaparte, senão mesmo um deus,
e já seguravas a coroa de ouro e o cetro
e já acariciava tua fronte o louro triunfal.
tudo eram conquistas e tudo conquistavas.
eras jovem e eras frágil
e te sentias impotente quando
contornavas as calçadas de ouro dos hotéis de luxo
ou quando avistavas a menina rica e bela,
com as suas jóias e as suas roupas elegantes e caras.
não sabias de seus desejos, de suas ânsias
e doenças e de seus nojos de si mesma.
talvez ela te amasse, mas o teu orgulho
a fez afastar-se de ti.
ainda procuras o trolley que desviaste
com teus amigos, para uma aventura sem fim
até que os trilhos paralelos
se tocassem no infinito.
ainda assistes a filmes de bang-bang
só para sentires a emoção do tempo
em que teu pai te levava para o reino
encantado e mágico do velho cine nazaré
que em tua memória ainda remanesce.
sentes ainda o cheiro dolorido e pisado dos alecrins
da paixão do senhor morto, do horto das agonias,
das chagas vermelhas, maceradas, da túnica
roxa, brilhante, da coroa de espinhos, dos cravos,
não os de cheiro, mas os de ferro, que ferem...
eras infante, então, e como sofreste
e como fizeste sofrer tua mãe, madona,
mater dolorosa e pietá sofrida e consoladora
de teus sofrimentos de então e de sempre.
buscas os cheiros embriagantes dos
brancos lírios de são josé e das rosas vermelhas
do velho caramanchão de antigamente.
os lírios se transformaram em cálices
de amargura e nas rosas depositas
o orvalho de tuas lágrimas pelo mundo
perdido num canto escuro do passado
e que não restauras, nem mesmo no
terceiro ou no sétimo dia de tua agonia.
a magia da música e dos álbuns de família
te trazem alegres e pungentes recordações
e te fazem viajar no tempo e no espaço
do turbilhão das mesmas emoções.
solitário, no silêncio da noite
pensas nos segredos, vícios
e incestos existentes na cidade,
nas feridas abertas pelos mais acerbos sarcasmos
e nos espasmos de brutais e homéricos orgasmos.
passeias pelos becos e logradouros do passado
e eles te conduzem ao tempo
que buscas em desespero.
perdido e cego caminhaste pelos labirintos,
teseu e minotauro de teu próprio destino,
nos confrontos que travaste com teu ego.
esfinge e édipo, não decifraste
teu enigma, e em vão buscaste
as pitonisas de outrora e de agora,
e inutilmente foste teu próprio ilusionista.
mas eras sábio e em algum momento
te reencontraste, ao te tornares
mais simples e mais puro,
malgrado as pedras, os lodos e as quedas.
em vão tapaste os ouvidos
para as palavras que te feriram
e inutilmente selaste a boca
para as palavras ferinas que proferiste.
não, não eras anjo nem demônio,
eras apenas um deus de barro
e teu sonho secreto e sagrado
foi sempre a transcendência
mas decepado de uma das asas
foste sempre um anjo torto coxo
capenga no a esmo vôo sem pontaria.
procuras ainda a pedra azul
de tua serra encardida.
esperas ainda no pátio da igreja
o ônibus que sempre vinha
demasiado cedo ou demasiado tarde.
lamentas a namoradinha jovem e esbelta
que envelheceu e engordou.
debalde procuras a sua cintura
para ternamente lhe pousares as mãos.
antes não mais a tivesses revisto.
ainda buscas a namoradinha
de uma noite de verão – ou inverno,
não importa, nada mais importa agora.
caim arrependido, pedes perdão:
já não suportas o onisciente olho do Senhor.
sofres pesadelo pela matemática
que te torturava, e acordas suado, ansioso.
procuras o batente da calçada de outrora
onde te cevaste nos lábios e nos seios da amada.
reencontraste a mulher que te amou
sem esperança, em face de tua indiferença,
e chafurdaste em sua carnívora rosa de carne,
talvez para feri-la novamente,
agora com a fúria e com o tédio.
devias estar feliz. realizaste teus sonhos
de consumo. tens uma boa mulher.
teus filhos são maravilhosos. tens
um bom emprego. no entanto ainda
não estás saciado. esperas um milagre
mas não sabes se os milagres ainda existem.
estás perdido: tens inveja de Deus
e não sabes se é virtude ou pecado.
equilibrista, caminhas com teus malabares
e alforjes por uma corda-bamba estendida
de menos infinito a mais infinito.
caminhas para a morte.
muitos dos teus amigos já são mortos
e te procuram com insistência.
infante, desejavas crescer
para realizares os teus sonhos de conquista.
adulto, queres retornar ao país de tua infância.
não sabes o que queres.
queres apenas morrer, esquecer.
queres viver eternamente num mundo
que não é o teu. contudo, tens esperança
e agora teces um poema sem fim
com o novelo infinito de tua vida
que se desdobra do nada ao tudo...