O liquidificador, por mais de um minuto, valeu-se de seu potente motor para esfarelar, triturar, trucidar, enfim, transformar em líquido de densidade semelhante à do leite e mel, que serviram de diluente, pedaços de maçã, pera, mamão, cenoura, beterraba, de abacate, além de algumas colheres de flocos de aveia e de farinha de linhaça, colocados, todos juntos, no enorme copo do aparelho. Algo decorrente de essa ação, deveras interessante, deixou-me surpreso e estupefato: a banana, dividida em duas metades e misturada às outras frutas, verduras e cereais, escapou ilesa, praticamente sem arranhões, de todo o processo destrutivo. Convém informar que o equipamento era novo e suas lâminas, claro, perfeitamente afiadas; como pôde ser percebido e comprovado pela destruição imposta aos demais itens da poderosa vitamina.
     Não pude deixar de relacionar o que acabara de presenciar com os eventos de vida e morte. Aquele não fora, ainda, o momento de a banana voltar ao pó (ou virar suco), ter sua consumação enquanto fruta em estado sólido. Se é que se pode afirmar isto: não havia chegado o instante, o átimo de tempo em que se extinguiria, teria fim, e passaria a ser parte indivisível do todo que comporia juntamente com os outros produtos liquidificados. Sem presença visível, somente poderia ser percebida com o auxílio de técnicas de separação de substâncias ou por olfatos e paladares bem apurados.
     Vezes sem conta já ouvi indivíduos letrados, iletrados, tolos, iniciados, jovens, maduros ou velhos dizerem que vida e morte são dois mistérios. Nunca concordei, integralmente, com essa assertiva, haja vista discordar ou divergir de suas opiniões no que tange à morte.
     Que de misterioso há na morte, se esta, sem anúncio nem aviso prévio, inapelavelmente, sobrevém-nos a todos, a qualquer momento, tenhamos tido ou não tempo de fazer o que nos impuséramos como meta ou objetivos de vida?
     A propósito, o que é mistério? Não poderia ser, também e, adredemente, a despeito ou em complemento aos conceitos que lhe dão dicionários e gramáticas, aquela situação ou condição, inusitada, que recai ou se insurge sobre nós sem que, a respeito ou em relação à mesma, por mais imaginativos ou inteligentes que sejamos, possamos exercer qualquer influência no sentido de tentar alterar ou modificar o formato ou o modo como ele se apresenta, mostra ou surge? O que há de inusitado ou de inédito na morte, se ela é a única certeza que todos nós, mais cedo ou mais tarde, haveremos de comprovar?
     Para o filósofo espanhol Sêneca, a morte goza de tamanha independência que sequer da vida precisa para que ocorra. Essa tese ou premissa ele a expôs quando, certa feita, vaticinou: tenho experimentado a morte desde antes de nascer, porque a morte é a não existência. O que quer que ela seja, depois de mim, será o mesmo que foi antes de mim.
     Quanto a mim, sou seguidor daqueles que entendem a vida como um dom, um privilégio, uma individualidade, e a morte, uma singularidade, um acerto de contas levado a cabo, muitas vezes, antes mesmo da efetiva movimentação de essas contas. A vida admite conceitos, sinônimos, definições; a morte é unívoca; a vida pode ser cíclica, morte é fim de ciclo. A vida é um caminho, de curto ou de longo percurso, a que somos convidados percorrer; a morte é o ponto desse caminho que, uma vez atingido, impede-nos de retornar ao início ou de seguir adiante. A vida é um mistério, a morte uma evidência.
     Assim como não é errado afirmar que morte significa, de fato, o fim natural da vida, certeza também é que não temos poder para dilatar nosso tempo de vida – o que parece lógico, já que não sabemos qual seria nosso prazo de duração - nem para postergar a hora, o minuto, o segundo em que haveremos de morrer; uma vez que, feliz ou, infelizmente, a ninguém é dado saber quando a indigitada das gentes nos visitará pela primeira e última vez.
     Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal e escritor piauiense ([email protected])