Elmar Carvalho

 
Mais de duas décadas atrás, quando viajei de avião pela primeira vez, eu era, como ainda de certa forma sou, um “caboclo matuto”, e tinha muito medo de viajar através de “asa dura”. Gostava de sentir a terra sob meus pés, ou pelo menos tê-la perto de mim. Viajava com medo, um tanto inquieto, algo acovardado; raramente arriscava uma rápida olhada pela janela, embora gostasse de apreciar a paisagem lá de cima e de contemplar o rebanho de nuvens abaixo de onde eu estava. Para driblar o meu medo, entretinha-me a admirar a beleza das aeromoças, que nesse tempo eram, geralmente, moças e bonitas, pois o cargo de comissárias de bordo, como antipoeticamente chamam-nas hoje, era um emprego cobiçado. Atualmente, as moças formosas, quase sempre altas e magérrimas, preferem ser modelos, quiçá uma top model. Foi vendo o desfilar das moças aéreas que me inspirei para escrever o meu poeminha A ero moça.
 
É claro que eu sabia que, com exceção do elevador, o avião era o meio de transporte mais seguro. Contudo, também sabia que, quando um desses pássaros mecânicos se desprendia lá de cima, raramente alguém sobrava para contar a história. Foi num desastre aéreo que Mário Faustino, o grande vate piauiense, que parecia ter a premonição de sua aeromorte, encerrou os seus dias terrenos, quando a aeronave em que viajava se espatifou contra a cordilheira dos Andes, nos arredores de Lima, no Peru. Consta que uma telefônica e enigmática voz de sibila lhe advertira para que não fizesse a viagem em que veio a morrer. Coincidência ou não, o poeta nascera numa casa, na praça do Liceu, em que se instalou, durante algum tempo, a Varig, empresa em cujo avião voou para a morte.
 
Embora seja Deus um Ser completamente realizado em si mesmo e que tudo realizou, e, por isso mesmo, bem humorado, não têm tido um final feliz e glorioso aqueles que tentaram zombar do Onipotente. Mas eu, ainda jovem, ainda cheio de entusiasmo pela vida e pela poesia, ao olhar pela janela do avião e ver as nuvens – brancas, fofas e brilhantes ao sol – debaixo de mim, perdi momentaneamente o medo que me encolhia, e me tornei audacioso.
 
Ruminei mentalmente uns versos, em que dizia ao Criador que ali estava eu, acima das nuvens, para um ajuste de contas, e para enfrentá-lo, cara a cara. Ora, dizem que nem mesmo o mais ungido dos homens pode contemplá-Lo face a face. Quando eu pensava esses versos, o avião foi chacoalhado fortemente, a um tal ponto que uma passageira, ao meu lado, começou a chorar em alto clamor. Ante a reação da mulher, tive medo, arrependi-me dos versos que fazia, orei, e resolvi abortar definitivamente o poema, que não chegara a ser lampejo, como diria Augusto dos Anjos. Não se zomba de Deus, nem mesmo em inocente traquinagem versificada. Vi, então, que as estradas celestes das aeronaves também podem ser “esburacadas” como as da terra. Hoje, verificando, pragmaticamente, que o medo é inútil, em se tratando de viagem aérea, e apenas me fazia sofrer, resolvi ter medo de ter medo. Agora, deixo-o do lado de fora do avião.


A ERO MOÇA
 
Elmar Carvalho
 
A aeromoça
abre os braços
e mostra as saídas
de emergência...
 
E eu a sonhar
que ela abrisse
as pernas e mostrasse
as entradas de quintessência.