Viagem à Terra Ignota
Em: 18/02/2015, às 20H04
[José Castello]
José J. Veiga (1915-1999) nunca teve o projeto de escrever literatura infanto-juvenil. Isso não o impediu, já no fim da vida, de constatar, ainda um tanto perplexo: “Sou lido pelos filhos e pelos netos, e não pelos pais e pelos avós”. Os traços dessa ligação intensa com a infância já se manifestam em seus dois primeiros livros, "Cavalinhos de Platiplanto", de 1959, reunião de doze relatos breves; e "A hora dos ruminantes", de 1966. Ambos nos voltam agora em bem cuidadas edições da Companhia das Letras.
O conto que empresta seu título a "Cavalinhos de Platiplanto" é narrado por um adulto que relembra sua infância. Não com a memória racional dos pesquisadores, mas com uma memória fluida e intuitiva que define a infância. O menino é apaixonado por cavalos. Um dia, vê vários deles em uma fazenda da pequena Platiplanto. Deseja ficar com pelo menos um, mas isso é impossível: fora de Platipalnto, os cavalinhos simplesmente não existem. Esbarra, assim, na muralha bruta do real.
A mesma impressão enviesada do mundo aparece em "A hora dos ruminantes" _ romance que a crítica, em geral, prefere ler como uma metáfora do regime militar de 1964. A apática Manarairema _ sempre os lugares pequenos e os nomes estranhos _ sofre três invasões consecutivas. Primeiro, é visitada por esquisitos homens de uniforme, que evocam as vestes militares. Depois, chegam os cachorros, que se espalham por toda parte. Por fim, milhares de bois. A reação dos moradores, contudo, mistura a perplexidade com a paralisia. São eventos fortes demais, que impedem qualquer reação.
Mais do espelhar uma situação política, os dois livros, provavelmente, refletem o temperamento do escritor. O gosto pelo pequeno e pelo clandestino também se infiltrou em alguns dos hábitos de J. Veiga. Durante longos anos, frequentou uma roda secreta escritores que se encontrava, nos fins de tarde, no tradicional Timpanas, no centro do Rio de Janeiro. Ao cair do dia, com o restaurante já fechado, o dono da casa abria uma exceção para o grupo. Na moita, ele erguia a porta lateral, abrindo caminho para algumas rodadas de cerveja no fundo do salão. A maior parte das cadeiras já estava sobre as mesas, e os faxineiros terminavam a limpeza de rotina. Nada disso os importunava. Ao contrário: a atmosfera clandestina os inspirava. Como um menino, Veiga se sentia em um clube proibido. Em um ambiente mágico.
Por isso mesmo, ele nunca entendeu direito por que, quando leu pela primeira vez A hora dos ruminantes, o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, o considerou uma crítica feroz ao regime militar. A ficção de Veiga, de fato, tem um evidente caráter de crítica ao autoritarismo e faz, ainda, uma defesa enfática da liberdade. Mas, com sua linguagem lírica e metafórica, ela se afasta das pressões de circunstância. É uma ficção alegórica, na qual a realidade é substituída por figuras espantosas. O espanto, com todos os matizes, é seu objeto.
Veiga sofria de uma timidez quase infantil. Um dia, em um sebo do centro do Rio, cruzou com Carlos Drummond de Andrade. Teve vontade de puxar conversa, não conseguiu. Entrou, então, um amigo que, o avistando de longe, gritou: “Oh, Veiga, como vai?” Foi o bastante para que Drummond entrasse na conversa, perguntando: “José J. Veiga, o autor dos Cavalinhos?” Paralisado, emudeceu. O poeta o ajudou: “Muito bonito seu livro, eu gostei demais”. Continuou em silêncio _ a pose de menino encabulado _ até que Drummond, com elegância, se afastou. Foi o único encontro entre eles.
Esse espírito sensível se transporta, inteiro, para sua obra. Nascido em uma fazenda de Goiás, Veiga nunca perdeu o estilo interiorano. A própria literatura, admitiu, não passava, para ele, de um exercício de coragem, nunca realmente concluído. “Só me dou por satisfeito quando acho que cheguei o mais perto possível do que estava querendo dizer, já que a coincidência entre o pretendido e o conseguido é impossível”. Sabia que o fracasso é parte inerente da escrita. Em entrevista a Edla Van Steen, admitiu: “Toda obra de arte é o resultado aceitável de um fracasso”. Para Veiga, um livro só está pronto quando o escritor reconhece a própria derrota.
A fidelidade a si marca toda a obra de José J. Veiga. Sua ficção, imitando as crianças, é direta, sincera, sem rodeios. Para Veiga, que sempre desconfiou da crítica, a literatura começa onde o arsenal teórico termina. Entre seus escritores favoritos estava J. D. Sallnger, outro autor que nunca perdeu a pose “juvenil”. Identificava-se, ainda com os escritores menores, como o russo Alexandre Leskov, autor de contos sobre a vida comum na Rússia. Também em seu caso, é do pequeno, quase invisível, que retira sua escrita.
Lançou seu primeiro livro aos 44 anos. Foi um homem lento, para quem a pressa era uma ameaça. "A hora dos ruminantes" chegou a ter dez versões antes da definitiva. Sua luta com as palavras tinha um objetivo claro: chegar a uma linguagem não literária. Fez essa descoberta quando leu o "Clarissa", de Érico Veríssimo, relato que reproduz a leveza e a agilidade da linguagem falada. Passou, então, a desprezar as palavras difíceis e as construções rebuscadas. A espontaneidade e a fluência são, de fato, marcas de suas ficções.
Influenciada pelos teóricos europeus, que se espantavam com a nova ficção surgida nos trópicos, a maior parte da crítica sempre o alinhou na estirpe do realismo fantástico. Mesmo reconhecendo o papel crucial que a linguagem simbólica desempenha em suas narrativas, Veiga desprezava essa filiação. A literatura de Veiga é feita de perguntas. Ele a via como “uma viagem a uma terra ignota”. Fartamente adotadas em escolas, as narrativas de Veiga despertam no leitor adulto a paixão pelo desconhecido que as crianças conhecem tão bem.
Por tudo isso, a literatura de José J. Veiga guarda um caráter atemporal, que vai além das ditaduras e das escolas literárias, o que lhe confere uma força absolutamente contemporânea. A leitura de seus livros, agora, é não apenas uma chance de reencontrar um grande escritor. Imitando, mais uma vez, o mundo infantil, ela nos convence de que o passado nunca passa.
(Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 14/02/15)
(Fotografia de autoria de Ruy Proença, realizada durante uma das últimas entrevistas de Veiga)