VESTIDA DE NEGRO
Por Margarete Hülsendeger Em: 05/06/2016, às 10H16
Lo más triste que puede pasarle a una persona, tener recuerdos de mentira.[1]
Juan Gabriel Vásquez
Difícil dizer quando a morte chega para alguém. Para a maioria, o como, o porquê e, principalmente, o quando é uma abençoada incógnita. No entanto, Clarice não recebeu essa benção. Ela soube no mesmo instante e, apesar de poder fugir, preferiu esperar.
No canto mais escuro do restaurante, o homem bebia. A cerveja estava morna, o gosto era ruim, mas ele não se importava. Beber era apenas uma desculpa, uma distração. Tomando mais um gole de cerveja, estalou os lábios, limpou a boca com as costas da mão e permaneceu com os olhos fixos no outro extremo do restaurante. Um sorriso perverso surgiu em seu rosto.
Clarice já havia trocado de roupa duas vezes. Não conseguia encontrar nada que lhe agradasse. Exausta, caiu de bruços na cama. Olhando para o armário aberto, lembrou do vestido vermelho. “Não!”, disse para si mesma. Precisava de algo novo, diferente. “Quem sabe o vestido branco?”. Afinal, ela o reformara, justamente, para usá-lo em uma ocasião especial. A mãe dizia que dava azar vestir branco. “Bobagem! Pura superstição!”. Decidida, levantou-se da cama e caminhando até o guarda-roupa estendeu a mão para o cabide.
O garçom veio perguntar se ele queria mais alguma coisa. O homem, com um resmungo, pediu mais uma cerveja, só que dessa vez gelada! Pela milésima vez colocou a mão dentro do bolso do casaco. Todos pensavam que podiam enganá-lo, só porque não gostava de briga ou confusão. “Não sabem com quem estão se metendo!”, pensou com raiva. O garçom trouxe a cerveja. Sem tirar os olhos do outro extremo do restaurante, bebeu satisfeito. “Agora sim, gelada, bem como eu gosto!”.
No táxi Clarice alisava o vestido. Sentia-se, ao mesmo tempo, bonita e estranha. O vestido caíra-lhe a perfeição, mas a estranheza de vesti-lo em uma situação completamente diferente daquela para a qual o havia comprado a deixava nervosa. E se desse, realmente, azar? “Bobagem!”, voltou a repetir para si mesma.
- Moça – disse o motorista. – Chegamos.
Olhando pela janela, Clarice percebeu que estava diante do mesmo restaurante onde tudo havia começado. Ansiosa, sentiu as palmas das mãos ficarem úmidas. Por que aqui? Como sempre, ele não quis dar explicações. No entanto, um sentimento forte, espécie de intuição, lhe dizia que hoje tudo estaria resolvido. Eles começariam do zero. Alisando mais uma vez o tecido branco, saiu do táxi.
No restaurante escuro o branco do vestido se destacava. Controlando o nervosismo, Clarice permaneceu na porta tentando ver na escuridão. Não foi preciso esperar muito, ele estava de pé, ao lado de uma mesa, e fazia sinais para que ela se aproximasse. Sentindo um formigamento gostoso espalhar-se pelo corpo, andou até ele.
Tudo aconteceu muito rápido. Clarice não viu o homem sentado no canto mais escuro do restaurante e nem mesmo a arma que ele sacou de dentro do casaco. Na verdade, seus olhos estavam fixos no outro extremo da sala. Assim, quando a arma foi disparada, não entendeu de imediato o que estava acontecendo. Simplesmente sentiu, mais do que viu, seu mundo desmoronar.
No restaurante a confusão foi total. O garçom, que antes havia servido a cerveja, lutava com o homem, tentando desarmá-lo. O homem por sua vez não parava de gritar:
- Te peguei desgraçado! Agora quero ver quem é o corno! Quero ver quem é o idiota! Vai pensar duas vezes antes de se meter com a mulher dos outros!
Os gritos foram os responsáveis pelo despertar de Clarice. Seus olhos iam do bêbado, que continuava se debatendo, para o chão, onde seu homem estava caído. Sacudindo o torpor que a mantinha imobilizada, ela correu até ele e segurando-o em seus braços gritou em desespero por socorro.
Ninguém a ouvia. O homem ensandecido berrava, dizendo mentiras e lançando acusações. Horríveis mentiras que ela se negava a escutar. Seu homem não a trairia. Seu amor não era o monstro que aquele bêbado descrevia. Enquanto continuava abraçando-o, percebeu seu lindo vestido branco tingir-se de vermelho. E foi nesse instante que Clarice viu a morte. Ela chegava vestida de negro pronta para arrancar pela raiz seu coração e sua alma. E Clarice não fez nada. Não fugiu. Apenas esperou.
[1] “O mais triste que pode acontecer a uma pessoa, ter lembranças de mentira” (Tradução minha), retirado do livro “El ruído de las cosas al caer”, do escritor boliviano Juan Gabriel Vásquez.