Capa do romance Úrsula
Capa do romance Úrsula

Úrsula, o romance abolicionista apagado do cânone brasileiro

 

Décio Torres Cruz*

 

 

Escrito em uma época em que as mulheres ainda não possuíam proeminência nem espaço na literatura, Úrsula foi publicado em 1859 sob o pseudônimo de “Uma Maranhense”. Esta obra mais conhecida de Maria Firmina dos Reis, a primeira mulher romancista e a primeira negra a ter livro publicado no Brasil, tornou-se o primeiro romance afro-brasileiro, pioneiro da literatura antiescravista no país. Antecipando o atual marketing pessoal das redes sociais, ela própria escreveu uma nota publicitária para anunciar seu romance no Jornal A Imprensa no dia18 de fevereiro de 1860:

 

Esta obra, digna de ser lida não só pela singeleza e elegância com que é escrita, como por ser a estreia de uma talentosa maranhense, merece toda a proteção pública para animar a sua modesta autora a fim de continuar a dar-nos provas de seu talento.

 

Na trama, encontramos os ideais abolicionistas do século XIX, muito tempo antes da publicação de A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães. Com um discurso bastante questionador do status quo da época, o livro trata de diversos temas (traição, ciúme, incesto, injustiça, impunidade, fidelidade, escravidão e liberdade) decorrentes de duas tristes histórias de amor e ódio: a primeira resulta da traição entre pai, filho e uma jovem órfã interesseira; a segunda é ocasionada por um inesperado trio amoroso: Úrsula, seu tio Fernando e o jovem Tancredo. Também mostra a forte amizade entre um negro e um branco na qual o personagem negro Túlio revela sua própria voz.  Esta amizade tem início quando Tancredo, desnorteado pela perda da mãe e pela traição da noiva e do pai, cai do cavalo, perde os sentidos e é socorrido pelo jovem escravo Túlio que o resgata da queda e o leva para a casa de Úrsula e de sua mãe Luísa B. para quem trabalha. Úrsula passa, então, a cuidar de Tancredo, prenunciando a paixão entre os dois. Quando se recupera, Tancredo narra o seu malsucedido caso amoroso ao qual havia se referido em seu delírio. Com a convivência com Úrsula, nasce a sua segunda história de amor. O discurso abolicionista é revelado, inicialmente, na voz do protagonista branco (Tancredo) que prega a igualdade entre os seres humanos:

 

— Cala-te, oh! pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio — interrompeu o jovem cavaleiro — dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. [...] e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante. Sim — prosseguiu — tens razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus sentimentos! Sim, acerbo deve ser o seu sofrer, e eles que o não compreendem!! [...].

 

Em seguida, este discurso reaparece na voz dos próprios personagens negros, como nesta fala de Túlio:

 

Túlio contemplava-o silencioso até que por último exclamou: — Homem generoso! Único que soubeste compreender a amargura do escravo!... Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: — És meu! – Ele curvou a fronte, e humilde, rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E entretanto este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!

Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta porém em breve dessa doce ilusão, ou antes sonha que a engolfara, e a realidade opressora lhe aparece: é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os areais ardentes, as sombras projetadas pelas árvores, o oásis no deserto, a fonte e a tamareira. Foge a tranquilidade da choupana, foge a doce ilusão de um momento, como ilha movediça; porque a alma está encerrada nas prisões do corpo! Ela chama-o para a realidade, chorando, e o seu choro, só Deus compreende! Ela não se pode dobrar, nem lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo geme, e ela sofre, e chora; porque está ligada a ele na vida por laços estreitos e misteriosos.

 

A narração libertária também reaparece na voz feminina da preta Suzana que denuncia as atrocidades do navio negreiro:

 

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! Muitos não deixavam chegar esse último extremo – davam-se à morte

 

Tudo isso é exposto com a mão segura de uma escritora afrodescendente, conhecedora não só da história de seu povo e das atrocidades contra eles cometidas, mas também da literatura da época (inclusive a francesa) e de técnicas narrativas aguçadas que captam a atenção do leitor ao criar um enredo bastante sedutor com todos os ganchos de uma trama bem elaborada.

 

Embora este romance tenha sido publicado em 1859, muito antes dos poemas de Castro Alves sobre a escravidão (O navio negreiro foi publicado em 1870, onze anos depois), ele ficou, por muito tempo, completamente apagado dos estudos literários canônicos brasileiros, não tendo o mesmo destino de outras obras abolicionistas, indianistas e nacionalistas do nosso Romantismo. Foi injustamente excluído de nossa história literária, fato que revela o preconceito racial e de gênero, como aconteceu de forma similar com o romance O bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha, também proscrito da literatura naturalista canônica por abordar uma relação homoafetiva entre um negro e um jovem rapaz branco. Do mesmo modo, apesar de seu livro Gupeva (1861) ser anterior a Iracema (1865) e Ubirajara (1874) e possuir as mesmas características do romance indianista brasileiro, José de Alencar ficou consagrado como o grande autor nessa temática (ao lado de Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães), enquanto Maria Firmina por muito tempo ficou invisibilizada. Gupeva (o nome do padrasto da heroína) retoma a história de Catarina Paraguaçu e aborda o amor impossível entre o francês Gastão e a jovem indígena Épica.

 

Além de Gupeva e Úrsula, Maria Firmina dos Reis escreveu Cantos à beira-mar (1871), poesias; e o conto A escrava (1887), além de diversas músicas e hinos com suas letras: “Hino da libertação dos escravos”, “Hino à mocidade”, “Auto de bumba meu boi”, “Rosinha”, “Pastor estrela do Oriente”, “Canto de recordação” e “Valsa”, com letra de Gonçalves Dias. Sua rica e potente obra precisa ser mais conhecida e explorada pelos estudantes e pesquisadores brasileiros. Até o início dos anos 2000, os estudos sobre Reis eram raros e restritos às instituições maranhenses. Seus livros só foram redescobertos em 2003, após a promulgação da Lei Federal nº 10.639 que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afrobrasileiras e africanas a partir do ensino fundamental nas escolas de todo o país.

 

Sobre a autora

 

Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, Maranhão, em 11 de março de 1822 (data que ficou dedicada ao Dia da Mulher Maranhense em sua homenagem) e faleceu, cega e pobre, em 11 de novembro de 1917. Filha da escrava alforriada Leonor Firmina dos Reis e (supostamente) de um homem de posses chamado João Pedro Esteves, além de escritora, Maria Firmina era musicista e professora primária. Em 1880, com o título de mestra régia, fundou uma escola gratuita e mista no povoado de Maçaricó. Ela escrevia para jornais e revistas, nos quais publicava alguns de seus poemas. Escreveu em diversos gêneros: romance, novela, conto, e poesia, além de composições musicais. Durante muito tempo, sua obra ficou esquecida e somente em 1962 o historiador Horácio de Almeida (1896-1983) a redescobriu e deu evidência para esta escritora e sua importante obra.

 


* Escritor, crítico literário, tradutor e professor universitário. Membro da Academia de Letras da Bahia, da ALARJ e ACL de São Paulo. Autor de Viagens & travessias (2025), A poesia da matemática (2024), Histórias roubadas (2023) e Paisagens interiores (2021), dentre outros.