Uma Crônica de Natal
Por Marcelo Martins Eulálio Em: 22/12/2025, às 13H00
Uma Crônica de Natal: Deus presente nos pequenos encontros
[*Marcelo Martins Eulálio]
Era uma noite de dezembro.
A chuva caía sem pressa, insistente, como se quisesse lavar as ruas e, quem sabe, algumas consciências. Dezembro sempre surpreende: mistura pressa com nostalgia, luzes com silêncios.
O encontro foi casual.
Eu dentro do carro, protegido do frio e da chuva. Ele, do lado de fora, vestia o que tinha: short, camisa e chinelos velhos, gastos pelo tempo e pelo chão. Aproximou-se com cuidado, quase pedindo licença para existir.
— O senhor quer uma cocada?
— Não, obrigado.
Talvez constrangido, talvez sensibilizado, estendi-lhe uma nota de vinte.
— O senhor quer de qual? Coco?
— Não, fique com o que lhe dei.
— Obrigado, senhor.
E partiu. Não sei para onde. Não sei se tinha destino.
Não soube o seu nome.
Pensei em seus pais. Estariam vivos? Teriam partido? Estaria ele sob os cuidados de uma avó ou irmão? Ou seria órfão de gente e de destino, entregue às mãos apressadas de um estranho qualquer?
Perguntei-me se conhecia a violência para além daquela noite, uma violência sem nome, cotidiana, que rouba a infância aos poucos e ensina a trabalhar antes mesmo de sonhar. Teria aprendido cedo demais que a noite também é lugar de sobrevivência?
Havia nele algo que lembrava os pobres de todos os tempos. Era pobre como o Filho de Maria, o carpinteiro de Nazaré, o Cordeiro de Deus que nasceu fora dos palácios, entre os “humildes da Terra”, aqueles que a história quase nunca registra, mas que sustentam uma fé profunda no Deus de seus pais, Abraão, Isaac e Jacó. Os invisíveis. Os que esperam, mesmo sem garantias, que um dia os humilhados sejam elevados.
Seus olhos estavam marejados.
O cansaço e o sofrimento já lhe pesavam?
Seria fome?
O que aquele menino queria me dizer, mas não disse?
Queria um abrigo para o sono descer com doçura? Ser criança, sem pressa de entrar no tempo?
Queria um abraço?
Ah, o abraço… Há dores que ele cura sem precisar de palavra alguma. Palavras, muitas vezes, sobram, e quando sobram, ferem. Já o abraço não exige explicação, não interroga, não julga. Apenas acolhe.
E o silêncio… ah, o silêncio. Há momentos em que é preciso habitá-lo, respeitá-lo, deixá-lo dizer o que a linguagem não alcança. Porque no silêncio, às vezes, mora tudo o que realmente importa. E por um instante, uma fração quase imperceptível do tempo, eu e aquele menino experimentamos o silêncio. Não o silêncio vazio, mas aquele que diz sem falar, que aproxima sem tocar, que reconhece sem perguntar. Foi um silêncio breve, mas inteiro, onde nenhuma palavra faria mais sentido do que simplesmente estar.
Entre um sorriso tímido e um aperto no coração, parecia carregar mais perguntas do que respostas. Talvez suas alegrias, se é que as tinha, estivessem guardadas em algum lugar secreto: os sonhos. Talvez isso fosse tudo o que lhe restava.
Seus pequenos ombros já suportavam o mundo.
Não o verei mais.
Ele voltou para a rua, com seus olhos marejados, vagalumeando para a noite, para a fuga diária de tantos Herodes modernos que perseguem, silenciosamente, os pequenos e os frágeis. Não sei se algum anjo o protegerá. A noite decidirá. E se os lobos permitirem. Apenas a lua iluminava o seu caminho.
São tantos como ele.
Meninos trabalhadores, precoces, cansados antes do tempo. Meninos operários, como Aquele que veio ao mundo para nos livrar dos nossos pecados, e que também encontrou portas fechadas logo ao nascer.
A vida insiste em nos confrontar com seus absurdos, suas dores e seus becos aparentemente sem saída. Ainda assim, a esperança cristã nos ensina a procurar sentido mesmo quando tudo parece escuro.
“Tende fé em Deus”, disse Cristo.
Não uma fé frágil, ideológica ou passageira, mas uma fé viva, daquelas que se traduzem em gestos, atitudes, obras. Porque a fé que não se encarna na vida cotidiana torna-se vazia, quase morta. Deus não se deixa apreender como uma fórmula; Ele se revela na experiência, no caminho trilhado com amor, fé e esperança.
O Espírito do Natal nos chama a isso: a reconhecer Deus presente nos pequenos encontros, a enxergá-Lo nos rostos anônimos da rua, a perceber que Ele espera sempre algo de nós, uma atitude, um gesto, uma porta aberta no coração.
Que este Natal nos alimente da fé em Deus e do amor ao próximo.
E que não nos faltem olhos para ver Cristo passando entre nós, silencioso, sob as chuvas de dezembro.
*Marcelo Martins Eulálio é advogado, professor universitário e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.

