Uma casa nada engraçada
Em: 07/09/2017, às 18H00
por Cassionei Niches Petry
Comecei a ler a obra de Shirley Jackson (1916-1965) pelo conto “A loteria”, seguindo a uma das tantas dicas de leitura de Stephen King em Dança macabra, em que aponta a autora como a exceção entre os escritores de terror por não sofrer restrições da crítica. Não vou entrar nessa polêmica de ressentimento dos escritores de gênero que clamam por um aval dos críticos ao mesmo tempo em que os desdenham. Para mim, sendo de gênero ou não, o que importa é se, além de contar uma boa história, o escritor o faz com elaboração artística. Shirley Jackson está neste time, assim como King em algumas de suas obras.
Sempre vivemos no castelo, de 1962, ganha edição recente da Suma de Letras (por sinal, selo que publica por aqui o rei do terror), com tradução de Débora Landsberg, e tem como narradora uma jovem de 18 anos, Mary Katherine, ou simplesmente Marricat, a caçula da família Blackwood, vivendo com a irmã, Constance, e o Tio Julian. Os três foram os únicos sobreviventes de um envenenamento que matou, 6 anos atrás, pai, mãe, irmão e tia das jovens, o que resultou num julgamento da irmã mais velha. Apesar de inocentada e o verdadeiro culpado não ter sido descoberto, a população da cidade passa a odiá-los, e eles decidem viver reclusos no casarão, palco dos acontecimentos, recebendo a visita de pouquíssimos amigos.
Merricat ainda sai regularmente para as compras, porém é sempre hostilizada por adultos e crianças. Constance, por sua vez, jamais consegue sair, vítima talvez de agorafobia, e a irmã menor não faz nenhuma questão de ajudá-la a superar o problema. Já o tio vive numa cadeira de rodas e tem alucinações, consequência, ao que parece, de ter escapado do envenenamento. O arsênico fora colocado no açúcar em uma das refeições familiares e ele era comedido no seu uso. A irmã mais velha, por seu turno, jamais ingeria açúcar (um dos motivos de sua acusação), enquanto a caçula havia ficado de castigo no quarto sem poder comer.
Segundo o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, a casa representa, como símbolo feminino, refúgio, proteção. Era o que Constance e Merricat, esta principalmente, queriam. Os planos, no entanto, começam a ruir quando chega Charles, um primo, e Constance permite que ele fique morando com elas: “... era o primeiro que entrava, e Constance o deixou entrar.” Quando a mulher toma esta atitude, ela, de certa forma, tem seu corpo invadido, o que pode ser um erro grave. Lembro-me de outro romance, Ópera dos mortos, de Autran Dourado, cuja protagonista, Rosalina Honório Cota, deixa Juca Passarinho entrar no casarão para trabalhar. Tudo se desestrutura, sua vida vira ruína ou se desmorona como as voçorocas que rodeavam a cidade.
Vemos durante todo o romance pequenos vestígios de uma narrativa de terror, como a presença do gato preto Jonas, que pertence a narradora, que por sua vez inventa magias para proteger a casa e sua irmã (“Que tipo de casa é esta”, pergunta Charles depois de ver um corrente de relógio pendurada em uma árvore). Há outros elementos que prefiro não revelar, para não estragar as surpresas do leitor, mas posso dizer que o terror psicológico predomina, numa linguagem aparentemente juvenil da protagonista, que se mostra, porém, dissimulada, escamoteando informações e nos fazendo duvidar dos acontecimentos. A pergunta que fica é se tudo aconteceu realmente, inclusive a crueldade da população local, ou não passou de fruto da imaginação da jovem, que volta e meia menciona um mundo paralelo ou imaginário que chama de Lua: “As coisas na Lua era muito brilhantes, de cores raras; minha casa seria azul”.
A escritora Joyce Carol Oates coloca Merricat no rol de “crianças e adolescentes precoces da literatura americana de meados do século XX”, como Scout de O sol é para todos, de Harper Lee; Rhoda Penmark de Menina má, de William March; e Holden Caulfield, de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. É uma grande personagem, que fica na mente do leitor, um grande trunfo de Shirley Jackson, escritora que merece mais atenção.