UMA CARTA PRECIOSA
Por Margarete Hülsendeger Em: 01/12/2012, às 15H37
Quando o silêncio se instala dentro de uma casa, é muito difícil fazê-lo sair; quanto mais importante é uma coisa, mais parece que queremos silenciá-la.
Marguerite Yourcenar
Em tempos de MSN, facebook e twitter escrever tornou-se uma verdadeira aventura. Imagine, então, escrever uma carta. Essa, com certeza, é uma arte perdida. No entanto, há pouco tempo, tive a grata surpresa de ser apresentada a uma escritora que fez de uma carta um livro. Estou me referindo a belga Marguerite Yourcenar e seu “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”.
Antes de “Alexis” já havia lido “Memórias de Adriano”, um romance histórico sobre o imperador romano Adriano. Nessa obra, a autora traça um perfil, não só do estadista, mas também do homem que governou, durante 21 anos, o Ocidente. Trata-se de um livro forte, repleto de frases belíssimas e parágrafos lindamente construídos, tornando uma simples biografia romanceada em uma obra literária de qualidade impecável. A última frase do livro é inesquecível, “Ainda um instante olhemos juntos os traços familiares dos objetos que sem dúvida não voltaremos a ver. Tratemos de entrar na morte com os olhos abertos”.
Portanto, foi com reverência que segui para a leitura de “Alexis”. Essa carta-livro foi publicada em 1929 e está escrita em primeira pessoa; Alexis, o marido, dirigindo-se a Mônica, sua esposa. Trata-se na verdade de uma carta confissão, na qual Alexis explica a Mônica o porquê de não poder amá-la como ela merece. Como o tema é delicado, Marguerite Yourcenar constrói a história consciente que “o problema da liberdade sexual, em todas as suas formas, é, na maior parte, um problema de liberdade de expressão”. Daí o cuidado com a forma de expressar-se, pois para M. Y., as tendências e as ações de uma geração para outra, variam pouco, o que realmente muda é “a zona de silêncio ou a espessura das capas de mentira”.
E é exatamente isso que Alexis confessa em sua carta, a mentira que tem sido a sua vida, incluindo-se aí o casamento com Mônica. Marguerite justifica-se – em apresentação escrita em 1963, para uma nova edição do livro – que escolheu escrever do ponto de vista de Alexis porque se tivesse escrito usando a voz de Mônica seria bem mais difícil, pois para ela não há nada mais secreto do que a existência feminina. Logo, para abordar um tema polêmico, como a questão do desejo sexual, ela precisou, antes de tudo, encontrar o tom correto para a voz de Alex.
Assim, no decorrer da leitura vamos descobrindo a história desse homem, desde a infância, sempre cercado por mulheres (mãe, irmãs e tias) até o casamento com Mônica, passando por sua primeira experiência sexual e o seu sentimento de ser um estranho entre seus iguais. É como diz Alexis, “A primeira consequência das inclinações proibidas é nos fecharmos dentro de nós mesmos: tem-se de calar ou só falar com os nossos cúmplices”. Essa carta-livro é, portanto, um triste testemunho de quem foi forçado a conviver com uma mentira para contentar a família e a sociedade da qual fazia parte.
Em “Alexis” a qualidade da escrita é a mesma que em “Memórias de Adriano”, com a diferença – para mim o diferencial – que a autora parece estar falando de alguém próximo a nós e do qual, apesar das aparências, sabemos muito pouco. Em “Alexis” a dor é palpável, a angústia vivida pelo personagem-título torna-se a nossa angústia. Quando ocorre o casamento com Mônica nem por um único segundo conseguimos acreditar que essa história possa ter um final feliz. Não há como, seria totalmente inverossímil. E M.Y. não nos decepciona. Na verdade, principalmente porque o livro foi escrito em 1929, o fim é surpreendente.
Após várias páginas explicando-se, remorando o seu passado, sem nunca dizer claramente o que o atormenta, Alexis opta por revelar-se e nessa revelação ele encontra a liberdade tão desejada. Mônica a todas essas é apenas aquela para a qual a carta está sendo escrita. Sobre ela, como disse antes, nada é revelado, seus pensamentos e sentimentos ficam escondidos do leitor. Contudo, não se preocupem, apesar do silêncio de Mônica, M. Y., não consegue impedir que em alguns momentos a voz feminina, mesmo que de forma sutil, seja ouvida.
Enfim, “Alexis ou o Tratado do Vão Combate” é exatamente isso: uma batalha que durou quase uma vida. Um combate que desde o início esteve fadado ao fracasso. Ninguém, por mais que se esforce, consegue esconder a sua real natureza. Em algum momento, tudo vem à tona. E foi o que ocorreu com Alexis.
Ele escolhe viver segundo a sua moral, acreditando que Monica será capaz de compreender, “o que é mais difícil que perdoar”. E assim como em “Memórias de Adriano”, M. Y. encerra o livro com uma frase que por sua força fica, depois do livro fechado, ressoando na mente do leitor. Trata-se do último argumento de um homem atormentado, mas desejoso de ser compreendido: “Havia contraído contigo compromissos imprudentes e a vida se encarregou de protestar: peço-te perdão, o mais humildemente possível, não por te abandonar, mas por ter ficado tanto tempo”. Esse texto vale a leitura! Com certeza eu recomendo!