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 A sabedoria dos velhos é um grande engano. Eles não se tornam mais sábios, mas sim mais prudentes.

Ernest Hemingway

A Ernest Hemingway[1]

Ele estava no escritório quando a Signora desceu as escadas. Desviando o olhar, fingiu mexer nos papéis espalhados sobre a mesa. No entanto, quando ela passou em frente à porta, rapidamente ergueu-se para cumprimentá-la. Era tão pequena, delicada. Um sentimento estranho de proteção despertou dentro dele.

- Il piove – a mulher disse, se esforçando por falar em italiano.

Ele sorriu para o seu esforço.

- Si, si, Signora, brutto tempo. – disse e, em inglês, repetiu. – O tempo está muito ruim.

A mulher também sorriu para a sua tentativa de falar em inglês. Em seguida, com um aceno de despedida, andou em direção à saída do hotel. A testa do homem se contraiu em preocupação.

- Para onde ela estaria indo com esse tempo? E onde está o maledetto do marido?

Quando o casal de americanos chegou ao hotel sentiu uma aversão imediata pelo homem. O marido, aquele stronzo, nem se deu ao trabalho de apresentá-la, era como se a mulher não existisse.

A americana era baixa, com o cabelo cortado bem curto, como o de um menino, e muito jovem. Jovem demais. Contudo, estranhamente, não se sentia velho perto dela. Ao contrário. Assustado, com esses sentimentos confusos, manteve-se longe sem, é claro, perdê-la de vista. Agora, por exemplo, aproveitando a sua indecisão em enfrentar o aguaceiro, chamou Lucia para verificar o que estava acontecendo. De passagem, entregou-lhe um guarda-chuva caso a garota quisesse sair.

Quando Lucia chegou à porta, a americana, realmente, estava pronta para deixar o hotel. Com rapidez, Lucia abriu o guarda-chuva e postou-se atrás dela. A jovem se assustou, mas quando reconheceu a empregada, sorriu com timidez.

- A senhora não se deve molhar – ouviu Lucia dizer, em italiano.

Ao ver que as duas saíam, ele correu até a porta e ficou espiando-as. Depois de andarem um pouco, elas pararam diante de uma mesa que ficava bem debaixo do quarto onde os americanos estavam hospedados. As duas conversavam em voz baixa, ele não conseguia ouvi-las. A mulher parecia triste e desanimada. Lucia olhou em sua direção e, ao vê-lo, fez um gesto com a cabeça pedindo ajuda. Ele acenou para que ela trouxesse a americana para dentro do hotel, depois correu para a segurança do escritório voltando a fingir que estava ocupado com os papéis sobre a mesa.

Quando as duas retornaram, Lucia fechou o guarda-chuva e com um murmúrio de desculpas se despediu. A mulher ainda permaneceu imóvel na porta alguns minutos. Seu rosto estava abatido e ela não parava de passar a mão pelo cabelo curto, como se com esse gesto pudesse fazê-lo crescer mais rapidamente.

Despertando desse devaneio, ela se virou para regressar ao quarto. Dessa vez, a garota não quis conversa, deu-lhe um sorriso cansado e subiu as escadas em silêncio. Quando ele escutou a porta do quarto abrir e em seguida fechar, levantou-se e foi direto para a cozinha.

- O que se passa com a Signora? – perguntou, sem rodeios, a Lucia.

Lucia encolheu os ombros:

- Un gatto. A Signora procurava um gato. Ele estava debaixo da janela do seu quarto e ela o queria.

Surpreso não disse nada. Saiu em silêncio da cozinha. Parado no saguão do hotel, coçava a cabeça pensativo. Num rompante, correu para a rua, sem nem mesmo se preocupar com um guarda-chuva. Primeiro foi até a mesa debaixo da janela do quarto da americana. Nada. Nem sinal do gato.

- Stupido! – pensou com raiva.

Em seguida, afastando-se da mesa, procurou qualquer esconderijo no qual o animal houvesse se escondido. Nada. A água escorria de suas roupas e cabelo. No entanto, não tinha a intenção de desistir. De repente, um som fez com que se virasse. O maldito gato estava na entrada do hotel. Com as patas molhadas arranhava a porta tentando entrar.

Com cuidado, aproximou-se dele. Agachando-se, o segurou firme. O pobre animal estava tão cansado que não fez nenhuma força para escapar. Os olhos tristes do bicho lembraram os da americana.

- O que ela viu em você? – perguntou em voz alta para o gato. O bicho respondeu passando a língua rosa em uma de suas patas.

Entrando no hotel foi até a cozinha. Quando Lucia o viu com o gato, não pôde conter o riso.

- Então, o padrone foi na chuva procurar o gato da Signora. Não acha que está muito velho para essas aventuras? – disse enquanto ria na sua cara.

- Feche a boca! – respondeu rispidamente.

Lucia levantou as mãos em sinal de desculpa. Depois permaneceu em silêncio, esperando.

- Pegue o gato e leve-o para a Signora – disse, enquanto estendia o gato molhado para a empregada.

Sem conseguir disfarçar o riso, ela segurou o bichano e subiu para o quarto da americana.

Cansado, ele ficou em pé no meio da cozinha, sem entender direito o que havia feito. Não era mais um menino. Lucia tinha razão, era velho demais para essas aventuras estúpidas. Olhando em torno, procurou uma toalha para se secar. O rosto angustiado da mulher não saia da sua cabeça. No fundo, a história do gato fora apenas uma desculpa. Era o idiota do marido o responsável por tudo. A raiva estava se transformando em ódio e ele nem sabia explicar a razão. Com força esfregava a cabeça, tentando secar o cabelo.

Um ruído fez com que retirasse a toalha do rosto. A americana estava parada na porta segurando fortemente o gato molhado contra o corpo. Os dois se olharam por alguns segundos em completo silêncio.

- Grazie – disse a garota. E sem esperar por uma resposta, saiu deixando-o sozinho.



[1] História baseada no conto de Ernest Hemingway “Um Gato à Chuva”.