[Bráulio Tavares]
 
Escrito, ou pelo menos finalizado, no carnaval de 1949, Divertimento (Madrid: Alfaguara, 1986) é uma das primeiras obras em prosa que Julio Cortázar escreveu e publicou, tendo ficado inédita por muitos anos. Na contracapa, Cortázar explica o que salvou o livro: “Me agradam de maneira irremediável sua linguagem livre, sua fábula sem moralzinha, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.”
 
Ele se referia a este livro e a El Examen, escrito em 1950 e publicado apenas em 1986 após a sua morte. Eram livros de uma Buenos Aires meio asfixiante pelas guerras políticas. O clima de repressão fez o escritor mudar-se para Paris em 1951. Depois dessa data, voltou a sua terra natal apenas a trabalho ou a passeio.
 
Divertimento é a história curta (146 páginas) de um grupo de amigos argentinos: artistas, boêmios, reúnem-se para conversar, ouvir música, beber, rir, discutir filosofia ou literatura, pintar. Neste aspecto, pode ser visto como um protótipo de O Jogo da Amarelinha (1963) que lida com pessoas um pouco mais velhas e já em Paris. O narrador da história, na primeira pessoa, é chamado pelos outros de O Inseto. Há vários detalhes interessantes, como um poeta que tenta produzir auto-alucinações verbalizadas em voz alta, como os surrealistas franceses faziam com sua “escrita automática”. Há uma espécie de mago meio charlatão, que parece invocar espíritos. Diz o Inseto a certa altura: “Nossos gostos eram Florent Schmitt, Bela Bartok, Modigliani, Dalí, Ricardo Molinari, Neruda e Graham Greene. O gato Thibaud-Piazzini escapou por um triz de se chamar Paul Claudel.”
 
Há poetas de estilos variados. Pergunta-se a um deles se ainda produz sonetos e ele diz: “Sim, mas como alguns produzem cálculos na bexiga.”  Há um fio de narrativa de mistério que a partir de certa altura arrasta a história rumo a um clímax. Renato, um pintor, mostra aos amigos um quadro em que está trabalhando, quadro que mostra uma rua ao amanhecer, com casas reconhecíveis, e duas figuras humanas misteriosas. A partir daí, alguns personagens se entregam a uma tarefa aparentemente impossível e absurda: andar pelos bairros da cidade à procura da rua mostrada no quadro de Renato. É uma dessas situações que Cortázar apreciava, como leitor e como autor: uma obra de arte ou um simples objeto cuja presença produz uma modificação ominosa na realidade. Outra subtrama é: a Busca Impossível. Em Cronópios & Famas ele sugere dar um nó num fio de cabelo, despejá-lo pela descarga da privada, e depois sair desmontando o edifício e esvaziando tubulações e manilhas grudentas de lodo secular, rua afora, até reencontrá-lo.
 
Falei em O Jogo da Amarelinha; não lembro de nenhuma cena de espiritismo nele, mediunidade, mesa Ouija ou coisa semelhante. Estas aparecem em Divertimento. Os dois livros têm em comum o ambiente de confraternização artístico-boêmia, mesclado com alguma rivalidade filosófica ou política. Essas turmas tornaram-se uma espécie de RPG poético-jazzístico-filosófico a que os personagens de Cortázar se dedicam. É o Clube da Serpente frequentado por Oliveira, no Jogo da Amarelinha; os exilados políticos de Livro de Manuel; os personagens meio bidimensionais, mas rebuscados, de 62: Modelo para Armar e outros. Turmas de esgrimistas verbais metendo-se em rosários de episódios com um pé em Jorge Luís Borges e outro em Jean Cocteau.
 
Por falar em poesia, Borges de vez em quando tirava um chapéu cerimonioso à milonga, e mais de uma vez arriscou suas estrofes nesse gênero, ou mescla de gêneros. Cortázar arriscou-se menos como poeta, mas uma prova do seu ouvido é este parágrafo em Divertimento:
 
“... e do picape saía a voz de Hugo del Carril: que el bacán que te acamala tenga pesos duraderos, que te abrás en las palabras con cafishos milongueros, y que digan los muchachos: “es una buena mujer.”
 
Pelo autenticidade do palavreado argentino não posso botar a mão no fogo, mas pela sextilha sim, porque é uma sextilha rimando ABABCD. (Imagino que seja citada, e não inventada. Hugo del Carril é um cantor de tango da geração de Cortázar.) Há uma milonga de Borges, Milonga dos dois irmãos, toda em estrofes de seis versos, mas com inversões de rimas, mais próximas do esquema do Martin Fierro, que Borges aliás conhecia muito bem. Tudo isto são pequenos detalhe cotidianos, da cultura radiofônica das ruas, que o autor insere como elemento realista numa trama próxima do insólito.
 
 

O fantástico cortazariano é mais uma questão de estranheza, presságio, simetrias assustadoras, alucinações, fatalidades. Muito daquilo que Freud chamou de Unheimlich, o Estranho. O sobrenatural aparece pouco. Suponho que logo após este livro ele já estava escrevendo os contos de Bestiário, onde essa tinta de fantástico se intensifica, como se alguém girasse só um pouquinho um botão, aumentando o contraste daquilo com o real-banal (que ele também reimagina tão bem).