Um dia, o retrato do Piauí inteiro

Acilino Madeira 

Acabei de ler o livro O morro da casa-grande (e recomendo) do escritor piauiense Dilson Lages Monteiro. Uma relato prenhe de memórias, de recordações de uma cidade que viu sua Igreja Matriz ser demolida em 1963.

___ Na Rua da Caquengo, a vendedora de espanadores, descontente com o espetáculo, parou à porta de Marciano, avisando Dona Margarida:
___Cristo se esfarelou, dona Margarida!
Marciano recluso ao quarto, às voltas com as páginas da história do Piauí, parou para ouvir a versão da vendedora, mas nada entendeu além da notícia esperada, e ocorreu-lhe a bisavó repetindo:
___ Barras vai desandar! Barras vai desandar! Aqui não se teme nem os castigos de Nossa Senhora.

Nesta passagem o relato de um sofrimento pelo apagamento da memória, como se as autoridades decidissem para além da paralisia de quem não pode fazer nada… Assim foi e assim será o Piauí de esquecidas e apagadas memórias. O romance se passa em Barras de Marataoã pelos meados do século passado. O livro cheira a óleo ardente de babaçu saído do interior das amêndoas em tachos ardentes sob chamas, a farinha torrada nas pedras do forno do aviamento… o livro tem cheiro de Piauí, meu Piauí querido.


Um interior distante de gente distante das coisas modernas, um tempo em que o menino queria ser coronel, e a bisavó rezava pelas ausências dos males do mundo numa penitência eterna que só os católicos guardavam em silêncio.

O velho patriarca rogava aos seus:

___ Não se metam em politica. É coisa traiçoeira. Política é para os maus, os perversos, os sem-escrúpulo. Os bons são destruídos moralmente, por mais que façam.

Barras das famílias, das fazendas e dos alqueires herdados de destemidos desbravadores dos sertões mafrenses. Barras dos coronéis, das beatas e dos padres desalmados. Esquecida, corroída de ternura amarelecida, e que um dia já foi o retrato do Piauí inteiro.Barras.

Acilino Madeira é filósofo, sociólogo e doutorando em economia em Coimbra, Portugal.