Eclipsaram-se as barreiras e os preconceitos a ponto de ele acreditar que nada mais era como antes. Tudo havia mudado, e ele simplesmente ficara para trás. Não soube ao certo quando isso aconteceu. Num dia, era um homem cheio de vitalidade e sonhos. No outro, havia se tornado uma sombra num mundo que tinha de repente acelerado, passando a mover-se a uma velocidade que ele não conseguia mais alcançar.
Seu corpo se tornara uma armadilha. Um lugar onde não se sentia mais a vontade, onde todos os dias travava uma batalha na tentativa de não se perder. Como detestava quando as pessoas – acreditando estar prestando um favor – insistiam em ajudá-lo, levando-o pela mão como se ele fosse uma criança. Noutro dia, surpreendeu o olhar de um rapaz fitando-o com nojo, só porque um pouco de muco escorria pelo seu queixo. Será que ele esqueceu às vezes sem conta que sua própria baba foi limpa? E o que dizer daquela argola que ele levava presa ao nariz? Isso sim era nojento.
Tentou afugentar os pensamentos sombrios refugiando-se nas lembranças de tempos mais felizes, quando cada coisa tinha o seu lugar e ele transitava entre elas com segurança, sem medo do ridículo ou da vergonha que pudesse ver refletida nos olhos dos outros. De dentro de um copo com água, em cima da mesinha de cabeceira, sua dentadura sorria. Sim, aquela coisa lhe sorria estupidamente, debochando da vida que ele agora levava.
Quando Júlia o deixou, ele sentiu que aquela era a pior coisa que poderia lhe acontecer. Não se enganou. Agora, desejava apenas estar ao seu lado, poder tocá-la, para mais uma vez sentir que tudo estava certo, que tudo estava no seu lugar. Com ela, tinha certeza, o mundo não lhe pareceria tão frio e assustador.
A sua volta os ruídos começavam a se tornar mais altos. Em instantes, um de seus poucos momentos de tranquilidade seria interrompido. Em instantes, teria de se render a todas aquelas demonstrações de cuidados que tanto o incomodavam. “Querido, vire-se para lá. Querido, você está bem? Querido, está na hora do seu remédio.” “Querido” uma merda! Uma grandessíssima merda!
Sem nem mesmo uma batida de aviso, a porta do quarto foi aberta.
- E então, como o meu querido passou a noite? – perguntou sorridente a enfermeira.
Silêncio.
- Ah! Acordamos de mau humor? – ela insistiu.
Silêncio.
- Meu querido não quer falar? Que pena. Afinal, hoje é domingo, dia de visita e a sua linda família deve estar chegando. Não vamos querer que ela o encontre assim, desarrumado e de mau humor – brincou a enfermeira, enquanto sem nenhuma cerimônia levantava o lençol que cobria um corpo murcho e completamente imóvel.