ELMAR CARVALHO

 


Chichico era um talento inato para o humor, desde ainda criança. Aos 16 anos era um verdadeiro artista do histrionismo. Sempre cercado de outros garotos, que lhe admiravam a graça, a verve, as mímicas, os arremedos, as imitações, as caretas, o riso espalhafatoso, os vários timbres de voz, com que arremedava pessoas conhecidas e seus próprios colegas, já era convidado para apresentações humorísticas em eventos promovidos pelo poder público, em aniversários de crianças e em gincanas escolares. Começou a ganhar fama na pequena cidade de Curralinhos e adjacências.

 

Quando na cidade foi instalada a companhia mambembe Mundial Circo, que de mundial só tinha o nome faraônico, disseram ao seu proprietário que no lugarejo existia um prodígio, um gênio das gargalhadas, um autêntico palhaço, de que os curralenses tinham orgulho e pelo qual nutriam sincera admiração. O primeiro a dar essa informação foi o prefeito da cidade, quando Bertoldo Mambrine, descendente de italianos, mas já com o sobrenome devidamente aportuguesado, lhe foi solicitar o alvará para o funcionamento dos espetáculos. O empresário circense, que por sinal era o principal artista de sua companhia, travestido de palhaço Cafuringa, prometeu ao prefeito que iria convidar o rapaz para ser um de seus auxiliares, numa das apresentações. Pediu a sua excelência que lhe encaminhasse o promissor humorista, para entrevista e para combinarem os ensaios.

 

A entrevista foi feita, os ensaios foram realizados e a estreia de Chichico foi anunciada com muito estardalhaço, por toda a cidade de Curralinhos, tanto na rádio comunitária, como em carro de som, e ainda através de caminhada pela cidade, com um palhaço de pernas de pau, que arrastava um séquito de moleques, que respondiam suas perguntas, formuladas em cantilena engraçada:

- O palhaço quem é?

- É ladrão de mulher!

- O que é que a velha tem?

- Carrapato no sedém!

- Hoje tem espetáculo?

- Tem sim, senhor...

Imediatamente, na entrevista, Mambrine sentiu que Chichico tinha imenso potencial, e viu que poderia transformá-lo, com algumas dicas e treinamentos, num grande palhaço, que poderia até superá-lo. Após fazer-lhe algumas advertências, marcar as datas dos ensaios e de sua apresentação, o empresário perguntou-lhe:

- Que nome artístico você pensa em adotar?

O rapaz respondeu de bate-pronto:

- Cacareco. Serei o palhaço Cacareco.

O espetáculo de estreia de Chichico, ou melhor, do palhaço Cacareco foi coroado de êxito absoluto. O circo estava completamente lotado, até mesmo os chamados camarotes, que não passavam de cadeiras mais confortáveis, posicionadas em lugares de melhor visão. Vieram pessoas das cidades vizinhas. O prefeito, o juiz de Direito, o delegado e vereadores estavam presentes, além de comerciantes, altos funcionários e o povo em geral. As gargalhadas estrepitosas que arrancou da plateia, travestido de palhaço Cacareco, foi uma consagração, uma verdadeira apoteose.

 

Chichico foi contratado como artista da trupe do Mundial Circo. Sua ascenção foi vertiginosa. Logo superou o mestre, isto é, o palhaço Cafuringa, ou, melhor dizendo, o dono do circo, Bertoldo Mambrine. Tornou-se o rei do picadeiro, sem ninguém que lhe fizesse sombra. Era justamente considerado o mestre do riso e da alegria, e já tinha o slogan de “rei da gargalhada”. Tinha o dom de arrancar risos e sorrisos. Ninguém lhe ficava indiferente. Como o palhaço do poema de Heine, era recomendado pelos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras como terapia aos tristes e deprimidos. Um circo de luxo quis contratá-lo, mas Mambrine o fez sócio de sua companhia e terminou permitindo o seu casamento com sua única filha, de nome Marina, trapezista e malabaristas, de vastos dotes artísticos e anatômicos.

 

Chichico não pode recusar tão tentadoras ofertas. Inteligente, mente aberta às novidades, passou a exercer influência na administração do circo, até porque era seu sócio. Logo a companhia cresceu, e se tornou uma das maiores e mais famosas do país. E Cacareco continuava sendo o seu mais importante e mais querido artista. Seu nome tornou-se conhecido nacionalmente. De vez em quando, era convidado a participar de programas de televisão, sempre exibindo novidades, e invariavelmente arrancando gargalhadas do auditório e recebendo delirantes aplausos. Com a morte de Mambrine, tornou-se praticamente o único dirigente do Mundial Circo. Isso o tornou orgulhoso, e não raras vezes tratava os artistas e os outros palhaços com certo menoscabo.

 

 

Um dia uma mulher, na cidade de Juazeiro do Norte, o procurou. Contou que seu filho gostaria de vê-lo; que era paralítico e não tinha cadeiras de rodas. Disse que o garoto o vira através da televisão, e passara a tê-lo como ídolo. Comprara até um dvd do palhaço Cacareco. Chichico foi duro. Disse que era um homem ocupado, um empresário, e não tinha tempo para atender pedidos desse tipo, até porque isso abriria precedentes para outras solicitações semelhantes. A mulher chorou, implorou, mas ele foi implacável, e não cedeu a suas súplicas. Ela tinha vestes longas, de chita, e cabelos desalinhados. Trazia um grosso terço ao pescoço, no qual se encontrava dependurado um enorme crucifixo. Beijando a enorme cruz, pediu-lhe que fosse ver seu filhinho entrevado, desse-lhe essa alegria, pelo amor de Jesus Cristo. Novamente, Chichico disse que não, e a expulsou aos gritos, com expressão bastante irritada. A velha, então, invocando passagem da Bíblia, falou, em tom ameaçador:

- Que Deus te retorne segundo tuas obras!

 

Havia perto uns curiosos, pessoas da cidade. Chichico perguntou se conheciam aquela mulher feia e impertinente. Informaram-lhe que ela era famosa macumbeira, rezadeira e benzedeira da localidade; que vinham pessoas de todas as partes para serem atendidos por ela; que nada cobrava, e as pessoas lhe davam o que queriam. Fazia também garrafadas medicinais com umas ervas, seguindo umas fórmulas que recebera de seus antepassados indígenas. Pelo que disseram, ela misturava macumba, superstições, rezas do catolicismos, pajelanças e medicina homeopática, além de simpatias. Chichico, por influência materna, era extremamente supersticioso, sugestionável, e tinha um medo muito grande de pragas, inveja e mau-olhado.

 

Assim, interpretou a rogativa da velha bruxa como uma maldição. Achou mesmo que ela ia fazer uma macumba contra sua pessoa. A preocupação do palhaço mais se acentuou quando encontraram um despacho perto do circo. Ficou certo que fora obra da macumbeira. Também achava que os artistas de seu circo lhe invejavam, tanto pelo fato de ele ser o dono, como em virtude de seus dons extraordinários de clown. Coincidência ou não, o fato é que ele foi perdendo o dom de provocar gargalhadas. Chegou mesmo, certa vez, a ser vaiado, por causa de uma frase infeliz que disse ao seu parceiro, em que deixou transparecer um tom de mofa e de desprezo. Enquanto isso, para aumentar a sua infelicidade e mesmo desgraça, o palhaço Piteco foi se transformando num mestre das gargalhadas, e angariando, cada vez mais, a simpatia do público.

 

Chichico foi se fechando em si mesmo, sempre ensimesmado, sempre taciturno e silencioso. Por fim, já não tinha mais coragem de enfrentar o picadeiro. Dizia que Deus lhe retirara os dons de ser engraçado, os atributos que o transformaram no maior palhaço do Brasil. Vivia enfurnado no trailer. Por insistência de sua mulher, foi se consultar. Os exames detectaram que ele tinha uma isquemia cardíaca e hipertensão, e que estava com altíssima taxa de colesterol. Tudo isso contribuiu para lhe aumentar a depressão.

 

Em curto espaço de tempo, o palhaço Cacareco foi encontrado morto, vestido e pintado como um palhaço. Anotado num bloco, ele pedia para ser enterrado como palhaço. Nunca se teve certeza se ele se matara com uma dosagem elevada dos medicamentos que usava, ou se simplesmente morrera ao dormir. Contudo, todos acharam estranho ele haver se caracterizado como palhaço, quando já perdera a graça contagiante que Deus lhe dera, e sequer se apresentava, nem mesmo como coadjuvante do palhaço Piteco, por muitos chamado de rei do riso.