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Com uma gilete ela traçava pequenos cortes ao longo do braço. Nada muito sério que os outros pudessem perceber, mas suficientemente dolorosos para que ela os sentisse. Tinha dias que precisava se machucar – nem que fosse um pouquinho – era a sua maneira de dizer, “Oi, Juliana! Você ainda está viva!”. Depois, ela sempre se sentia muito mal, mas isso era só bem depois quando os pensamentos ruins voltavam com força a sua cabeça.
Devagar Juliana largou a gilete e cobriu o braço com a manga do casaco. Tirando do bolso um maço de cigarros, acendeu um e pôs-se a fumar. Sentia-se calma, relaxada, como se tivesse acabado de fazer sexo. Isso a fez lembrar-se de Ana. Estava morta de saudades, mas desde o dia da “grande descoberta”, quando seus pais simplesmente surtaram, nunca mais a viu. Era como se ela tivesse desaparecido em um buraco negro. Suspirou, sentindo alfinetadas no braço. Ele agora pulsava como se fosse uma entidade à parte.
Lembrou um verso de Fernando Pessoa, “Porque verdadeiramente sentir é tão complicado que só andando enganado é que se crê que se sente”. Sua terapeuta vivia insistindo para que ela se abrisse, falasse dos seus sentimentos, dos seus problemas. Se ela tivesse lido Fernando Pessoa saberia o quanto é difícil sentir e, consequentemente, falar. Ah! Como ela detestava aquela mulher. Mais uma ideia “genial” dos seus “queridos pais”. “Vamos mandar a nossa filhinha para a terapia, quem sabe, assim ela não se cura dessa mania de gostar de meninas”. Que idiotas!
Olhando o relógio percebeu que as aulas terminariam em dez minutos. Juliana olhou-se no espelho e como sempre não gostou do que viu. Gorda. Sem graça. E agora uma prisioneira. “Maravilha de vida!”, falou em voz alta.
O sinal para o fim do último período soou por todo o colégio. Agora era o momento certo para sair, ninguém iria notá-la. Hoje não voltaria para casa com a mãe. Precisava de um tempo para pensar na vida. Queria muito ver Ana.
Com pressa correu pelo pátio em direção aos fundos da escola. Chegando na rua acelerou o passo e seguiu direto para a parada de ônibus.
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Francisco estava dando a última volta do dia. Mais uma hora e estaria encerrando o seu turno. Uma cervejinha antes de ir para casa e depois o descanso merecido. Quando viu a moça estender o braço não ficou irritado. Com sorte, talvez ela fosse a última passageira do dia.
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Cuidando para não cair, Juliana procurou um lugar para sentar. Viu um banco vago ao lado de uma senhora. Olhando-a com o canto do olho ela logo a rotulou, “Uma perua!”.
- “Será que essas velhas, não se dão conta do ridículo. Para quê toda essa maquiagem? Parece que ela está indo a uma festa” – pensou Juliana, torcendo o nariz, enquanto colocava os fones de ouvido.
Com um olhar de esguelha Cláudia avaliou a jovem sentada ao seu lado.
- “Meu Deus! Onde essa juventude vai parar? Parece um homem, vestida desse jeito. E com esse piercing no nariz está ainda mais ridícula e feia. Francamente, onde estão os pais dessa menina que não dão um jeito nisso. Uma vergonha!” – refletiu indignada enquanto se virava para janela e com cuidado alisava o vestido.
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No carro Gabriel ainda suava frio. Não conseguia se acalmar. A conversa com aquele indivíduo não saía da sua cabeça. Ficava repassando os detalhes como se fosse um filme. O olhar do rapaz, a roupa que ele vestia, o som da sua voz, seus gestos. E cada vez sentia seu coração acelerar. Estava tão perturbado que confundiu as marchas e, sem querer, pisou com força no acelerador do carro.
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Quando o sinal verde abriu Francisco arrancou pensando na cervejinha que iria tomar com os amigos.
Quando o sinal vermelho fechou, Gabriel não percebeu.
Quando o carro colidiu no ônibus, Juliana foi lançada contra Cláudia que bateu com a cabeça no vidro estilhaçando a janela.
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Mais tarde no noticiário da noite, o acidente foi descrito como mais uma fatalidade do trânsito ocasionada pela imprudência de um motorista desatento. “Poderia ter sido pior”, disse o jornalista. Apesar da violência do choque, a maioria dos passageiros do ônibus e ambos os motoristas não se machucaram gravemente. Um verdadeiro milagre. Havia ocorrido apenas uma morte, o de uma senhora que ao ser lançada contra a janela do ônibus, durante a colisão, sofrera um traumatismo craniano. Chorando, enquanto era atendida pela SAMU, uma adolescente insistia em dizer que a culpa havia sido dela.
FIM