(Miguel Carqueija)

Para Lovecraft, o terror nos rodeia invisivelmente... mas será uma coisa irresistível? Vejamos esta história lovecraftiana.
                                                 

  TREVAS NO JARDIM


                                                      


     Acordei por volta da meia-noite, com a sensação de estar escutando um ruído de fundo, contínuo, um fluir qualquer, como chuva, só que não era bem chuva, não saberia dizer o que era. Uma espécie de estática regular. Minha esposa continuava dormindo como um anjo, e eu só escutava aquele ruído de fundo, que agora me fazia lembrar o escoar de água corrente, e mais o tic-tac do relógio no canto oposto do quarto.
     Eu me sentia inquieto. Resolvi levantar, com cuidado para não despertar Clara, e dei uma olhada pela vidraça. Nós cultivávamos um belo jardim ao lado de nossa casa e, por ser primavera, estava todo florido, o que durante o dia representava um belo espetáculo. Clara tinha o maior gosto no cultivo das flores, e o fazia de forma profissional. Ela queria inclusive que eu decorasse certas coisas, a seu ver muito importantes:
— Os nutrientes das plantas, Ivo. É algo que nós devemos sempre saber, e é até fácil memorizar:
“São 16 elementos químicos, veja só: o carbono, o hidrogênio e o oxigênio, que vêm pela água e pelo ar; e os outros, que o solo fornece: nitrogênio, potássio, enxofre, magnésio, cálcio, e os pequenos nutrientes, zinco, ferro, boro, manganês, cobre, cloro e molibdênio. Fácil, não é?
— Muito – respondi, sem outra resposta na língua.
     O jardim, naturalmente, estava mergulhado nas trevas. Não chovia, e o ruído continuava.   Talvez as plantas estivessem chupando muito molibdênio ou coisa parecida. Devia estar soprando um vento fraco, pois dava para notar uma pequena movimentação das ramagens.
     Bocejei. Para que me preocupar? O ruído haveria de ter uma explicação natural. Voltei para a cama e esforcei-me por recomeçar a dormir.


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     Só que, na manhã seguinte, algo muito estranho havia acontecido.
     Foi Clara quem primeiro notou quando, após amamentar o nosso bebê, levou-o a passear no carrinho. Logo, logo, ela retornava, bastante alarmada:
     


— Ivo! Ivo! Venha ver uma coisa, por favor!
— Ver o que? – indaguei, erguendo os olhos da tela do computador.
— No jardim... uma coisa estranhíssima... você tem que ver!
Fui olhar, sem entender o pânico de Clara. O que eu vi foi, de fato, estranho e assustador. Orquídeas e rosas jaziam quebradas; havia solo revolvido e um trecho de chão que parecia chupado, ou seja, uma depressão em funil com uns oitenta centímetros de diâmetro. Clara identificou também umas pegadas na terra mole, que evidenciavam garras aduncas. Nosso cachorro, que felizmente dormia dentro de casa, farejava tudo inquieto e intrigado.
As pegadas pareciam sair e retornar à depressão.
— Um animal qualquer – falei.
— Que tipo de animal? Um tatu? Uma toupeira? Eles não são tão grandes e nem fazem essas coisas.
— Mas o que é que pode ser? O bicho-papão?
— Não sei e nem quero saber. Mas não posso admitir que maltratem minhas flores dessa maneira. Veja o que fizeram! – ela estava quase chorando.
Fui procurar uma pá. Quando voltei, porém, ela se opôs:
— Você está louco! Primeiro, não vai conseguir desenterrar essa coisa e só vai conseguir         estragar ainda mais o jardim. Segundo, se você conseguir desenterrar o bicho, vai ser pior ainda!
— Como assim, Clara? Ele não pode ser perigoso!
— Ah, não? E como é que você sabe disso?
— Animais subterrâneos geralmente são insetívoros, herbívoros... isso pode ser um tatu-canastra.
— Então deixe o bicho em paz. Ele não deve voltar pelo mesmo buraco.
— Tudo bem, então. O jardim é seu.


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     Naquela noite, porém, o ruído voltou.
     Desta vez acordei Clara e fomos ambos escutar na janela. Segurando Clara, senti que ela tremia.
— Veja – disse ela, emocionada. – Ali! Ali!
— Ali, onde?
— Perto das árvores. Veja!



Realmente, moitas pareciam se mover. Ela me abraçou com força.
— A coisa está ali. Só pode estar!
— Mas o que?
— Não é uma coisa natural. Não é, não é!
— O que você quer dizer com isso? Vamos lá ver!
— Você está louco! Nós não vamos enfrentar AQUILO...
        Achei que ela estava em pânico sem necessidade, e resolvi sair para ver o que estava acontecendo. Ela, porém, bloqueou a porta:
— Não, Ivo! Não vou deixar você ir! O professor! O professor! Lembra dele?
— Que professor?
— O Professor Loreto... esteve aqui... conversou sobre o Necronomicon... lembra agora?
— Ah, aquele maluco que namorou sua irmã? Mas que tem isso...
— Então não se lembra? Ele falou muito sobre os seres da noite, os que sussurram nas trevas... aqueles que espreitam a humanidade... ele não explicou como sabe disso, mas garantiu... lembra, Ivo? Que tais seres existem aqui em Pedra Torta.
— Tolices, Clara! Como é que a gente pode acreditar numa superstição dessas? Ele eu não digo nada, mas nós...
     Roque começou a latir. Clara levou um pequeno susto e, ao se voltar para ralhar com o cachorro, eu passei a chave na fechadura, abri a porta e saí. Ela me seguiu, amedrontada, tentando ainda me conter.
     E oxalá o tivesse conseguido. Porque o que eu vi, já descendo o buraco-funil de areia, me enregelou o sangue. Era como a cauda de uma serpente – só que dez vezes mais grossa. E descia rapidamente, pelo funil de terra...
— Você viu? – indaguei, embasbacado.
— Não vi nada. Só estou vendo mais plantas quebradas e um novo funil. O que me diz a isso?
— Não sei...
Recordei, naquele momento, algumas das palavras daquele “professor aloprado”:
— No dia em que estes seres conseguirem sair em massa do seu mundo subterrâneo... dominarão este nosso mundo. Como já fizeram no passado.


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     Não teríamos mesmo coragem de enfrentar a coisa da noite. Afinal, ela pertencia às trevas, e só Deus sabe porque vinha espreitar no mundo exterior, onde existe luz. Em todo caso, só o fazia à noite. Nós cimentamos os funis da melhor maneira que pudemos, esperando com isso bloquear a passagem da criatura. Mas quando começamos a escutar batidas através do próprio assoalho da casa, fizemos nossas malas.
— Querido – dizia Clara, em lágrimas, às vésperas de nossa partida para Belo Horizonte, onde tentaríamos a vida. – O jardim! Quanto nos custou! Quanto eu o amava... agora... abandonar tudo...
— Eu sei, e também me dói... mas o que podemos fazer? Enfrentar essa coisa?
— Quem sabe, uma boa espingarda acabaria com ele? Se pudéssemos emboscar esse boitatá... transformá-lo numa peneira...
Comecei a refletir na coragem de minha esposa e de repente senti vergonha de mim mesmo.
Nós éramos a humanidade. Não podíamos ser corridos de nossos lares por seres obscuros, por mais antigos e perversos que fossem. Devíamos ficar, defender nossa propriedade.
Desfizemos as malas. Desde então, com as armas que pudemos obter, vivemos na expectativa da noite – que nos parece inevitável – em que teremos de enfrentar o monstro das profundezas. Seja ele quem for – ou o que for.