ENTREVISTADO:
Leyla Perrone-Moisés
“A inspiração barthesiana sempre esteve presente em minha fundamentação teórica”, confessa Leyla Perrone-Moisés, que se consagrou como um dos principais nomes da crítica literária brasileira e que durante boa parte de sua trajetória intelectual e afetiva manteve uma relação de fidelidade com Roland Barthes – a obra e o homem. O interesse da pesquisadora e professora pelas ideias do pensador francês a levou a Paris, onde o conheceu pessoalmente e desenvolveu a amizade que se tornou fundamental para a ampliação da recepção de Barthes no Brasil. Leyla assinou várias traduções de sua obra, perseguiu seu pensamento em ensaios e livros de temáticas plurais e é a responsável pela “Coleção Roland Barthes”, da editora Martins Fontes, atualmente com vinte volumes.
Nesta entrevista, Leyla fala como pesquisadora, leitora e amiga do homem que lhe deu provas vivazes de amor pela literatura e de generosidade humana. “Pessoalmente ele era tão fascinante quanto por escrito: discretamente sedutor, desprovido de pose e provido de um grande senso de humor”, diz Leyla sobre aquele que também experimentou a arte para além da escrita – foi músico e pintor amador. Aquele que negava a “imortalidade desagradável” por abominar a repetição e por se permitir, apesar das críticas, atravessar fases diversas de um pensamento de amplitude monumental. Um homem plural por si.
Qual foi o primeiro contato da senhora com a obra de Roland Barthes, e de que forma a obra dele se reconfigurou quando vocês dois passaram a conviver juntos?
Soube da existência de Barthes em 1960, quando resenhei o livro de Maurice Blanchot, Le livre à venir, no Suplemento literário de O Estado de S. Paulo. Blanchot falava dele de um modo que despertou meu interesse. Na mesma época, eu escrevia no Suplemento sobre o nouveau Roman e me correspondia com alguns romancistas dessa tendência, entre eles Claude Simon, futuro Prêmio Nobel. Numa de suas cartas, Claude Simon citava um trecho de Barthes sobre a crítica literária. Comecei então a ler Barthes, e a citá-lo em meus artigos. Em dezembro de 1968, conheci-o em Paris. Foi o início de uma relação que durou até a sua morte, em 1980. Pessoalmente, ele era tão fascinante quanto por escrito: discretamente sedutor, desprovido de pose e provido de um grande senso de humor.
Ao longo de sua trajetória intelectual, Barthes foi criticado por “não prezar por uma coerência”, ideia expressa através das diferentes fases de sua obra. Sua flexibilidade de posicionamentos e a forma como defendia sua liberdade para mudar (o repúdio à tal “imortalidade desagradável”) foram, de algum modo, fundamentais para a compreensão que temos hoje da vivacidade do seu pensamento e da variedade de objetos que percorreram seu trabalho?
A trajetória intelectual de Barthes foi marcada por sucessivos deslocamentos. Ele detestava a repetição, e sempre que um tipo de discurso começava a “pegar” ele o abandonava para inventar outro. Isso foi explicado por ele mesmo, em sua obra. Era um procedimento dialético, que se desenvolvia de modo não linear, mas em espiral, sem uma síntese final. Através de todas as suas mudanças, uma coisa se manteve estável: seu amor pela literatura, a forma de linguagem que, segundo ele, é capaz de alcançar o mais alto teor de significação.
Em entrevistas, Barthes chegou a afirmar que as viagens lhe interessavam bastante, mas que esse interesse decaiu à medida que ele envelhecia. Não chegou a concretizar uma viagem ao Brasil, apesar de várias tentativas da senhora em realizá-la. A sempre apontada “pluralidade” do olhar e do debate de Barthes se ampliou a cada viagem? O encanto com o Japão, que gerou O império dos signos (1970), pode ser apontado como seu grande momento fora da França, no sentido de uma “revelação”?
Sim, suas duas viagens ao Japão foram momentos jubilatórios, tanto do ponto de vista pessoal quanto do escritural. O império dos signos é um de seus mais belos livros. O mesmo não aconteceu com a China, que ele conheceu em 1974, em plena “revolução cultural”. Ele desconfiou da vigilância então exercida sobre os estrangeiros e aborreceu-se com os estereótipos da propaganda maoísta. À medida que os anos passaram, ele viajou menos, por preocupação com a saúde de sua mãe, com quem vivia, mas também porque as viagens interrompiam seu trabalho de escrita.
O cinema se alia à publicidade, à fotografia e à moda no âmbito de linguagens visuais que interessaram à reflexão de Barthes. As imagens para o crítico francês eram “lidas” como um texto. Pode-se estabelecer algum paralelo entre a produção prática do pintor e desenhista amador Barthes e sua percepção teórica sobre a linguagem visual?
Seu talento de pintor amador o predispunha a uma percepção especial das artes visuais. Mas sua paixão maior era a linguagem verbal, e foi nesta que ele soube transpor suas observações visuais, recriando com palavras poéticas o que ele via e ajudando o leitor a ver mais e melhor.
Obras como Mitologias (1957), Sistema da moda (1967) e O grão da voz (1981) ainda são hoje referência para estudos que versam sobre temas que ainda sofrem algum preconceito em certos círculos acadêmicos, como música popular massiva, cultura de celebridades e star system. No entanto, temas como os citados têm atraído jovens pesquisadores no âmbito da comunicação e das ciências sociais. Como a senhora percebe a recepção da obra de Barthes pelos jovens no meio acadêmico? Há um interesse que se renova de algum modo?
O recente colóquio Barthes plural, realizado em São Paulo no último mês de junho, atraiu jovens pesquisadores de todo o Brasil. É um interesse crescente. São tantos os aspectos de sua obra que cada um escolhe um tema de sua preferência para analisar. Na verdade, a cultura pop só lhe interessou como objeto de estudo sociológico. Ele não gostava de música popular e, menos ainda, do star system, que ameaçava integrá-lo na categoria de “celebridade”. Mas não era um preconceito acadêmico, era um gosto pessoal. Como músico amador, ele só ouvia e tocava música clássica, Schumann e Schubert em especial.
Sobre o colóquio Barthes plural, eu gostaria que a senhora falasse um pouco sobre a conferência de abertura que a senhora realizou, intitulada “A palavra calma”. Há projeto para que os trabalhos apresentados no evento sejam publicados em alguma plataforma?
As comunicações do colóquio estarão disponíveis na internet nos próximos meses. Em minha conferência, tratei de um aspecto da personalidade de Barthes: sua gentileza, que transparece em sua obra. Ele propunha a palavra calma em todos os contatos humanos: no cotidiano, no ensino e nas discussões intelectuais em geral. Elogiava o “princípio de delicadeza” e desejava a “doçura” na linguagem. Detestava os discursos de poder, no ensino e na política. Nos últimos anos, sentia afinidade com o taoísmo e o budismo zen, que aconselham o desapego e a suspensão do sentido. Mas temia, por outro lado, que esse pacifismo pudesse resultar numa alienação. Existe uma contradição entre seu desejo de doçura e o caráter provocador de sua obra. Em seu diário, ele apontava essa oposição que o fazia sofrer.
Seu projeto de tradução da obra de Barthes surgiu ainda no início do relacionamento de vocês, no final dos anos 1960. Desde então a senhora foi responsável pela tradução de diversas obras, ao mesmo tempo em que seu trabalho como pesquisadora se tornou referência para os estudos literários e sociais brasileiros. A tradução e a pesquisa nascem de uma fonte em comum?
Embora eu tenha tratado de temas variados, ao longo de minha carreira, a inspiração barthesiana sempre esteve presente em minha fundamentação teórica. Traduzir Barthes foi uma forma de fidelidade a ele e à sua obra.
Pela editora Martins Fontes, a senhora coordena a Coleção Roland Barthes, hoje com 20 títulos – alguns deles, inclusive, já esgotados. Como está este trabalho atualmente? Há previsão de ampliar a coleção?
A coleção continua em aberto. Se a Martins Fontes conseguir comprar os direitos de outras obras ou de inéditos, ela pode ser ampliada. Estamos tratando disso.
No âmbito particular, mas também político, a senhora foi prova da generosidade de Barthes, quando ele contribuiu para que seu irmão, o ex-deputado Fernando Perrone, cassado pelo AI-5 e exilado no Chile, conseguisse ir à França desenvolver seu doutorado. Qual o legado humano que Barthes lhe deixou como amigo?
Muitos contemporâneos de Barthes o censuravam por não ser um militante marxista. Ele não gostava da arrogância dos militantes, e preferia a subversão à revolução. Mas ele sempre foi um pensador de esquerda, e pessoalmente era solidário com os marxistas perseguidos. Em 1974, encontrei-o na embaixada de Portugal em Paris, festejando a “Revolução dos Cravos”. Em seus seminários, acolheu numerosos fugitivos das ditaduras sul-americanas dos anos 1960 e 1970. Ajudou meu irmão exilado a inscrever-se na universidade e a obter, assim, os documentos necessários para permanecer em Paris, onde ele residiu até a anistia. Como amigo, sua generosidade era imensa. Participou da banca de tese de meu irmão como voluntário, e me agradecia constantemente por traduzir e divulgar sua obra no Brasil. As cartas dele, incluídas em meu livro Com Roland Barthes, comprovam sua delicadeza e sua afetividade.
Para um leitor que tem interesse em adentrar o universo de Barthes, quais leituras a senhora apontaria como fundamentais para um início? Por quê?
Aos professores e críticos de literatura, eu aconselharia a leitura de Crítica e verdade e do conjunto de ensaios que se encontram em O rumor da língua. Aos profissionais das artes visuais, A câmara clara e O óbvio e o obtuso. Aos não especializados, que buscam o prazer da leitura, aconselharia as Mitologias, que são inteligentes e engraçadas, O império dos signos, que dá vontade de ir ao Japão e de comer comida japonesa, e os Fragmentos de um discurso amoroso, que consolam, com humor, todos os que estão ou já estiveram apaixonados. A todos que desejarem ter uma visão de conjunto de suas propostas, eu aconselharia a Aula, que permanece como seu testamento intelectual.
Publicado originalmente em www.suplementopernambuco.com.br