Totemismo em Freud e as Olimpíadas de 2016

Flávio Bittencourt

No momento em que a minha cidade natal, o Rio de Janeiro, começa a se preparar para que nela sejam sediadas as Olimpíadas de 2016, vale a pena discutir, pelo menos de forma introdutória, os símbolos, especialmente aqueles que podem ser considerados "totêmicos" ou quase-totêmicos, uma vez que não é impossível que um bichinho figure na marca-símbolo desse magno evento desportivo mundial.

Por que o gato era sagrado entre os egípcios da antiguidade e a vaca é até hoje sagrada na Índia? Por que o CIGS (Centro de Instrução de Guerra na Selva) do Exército Brasileiro tem como mascote uma onça pintada e seus valorosos integrantes a exibem com o máximo orgulho? Por que um partido político brasileiro se diz tucano e seus membros às vezes são chamados tucanos? Por que seres humanos veneravam e ainda veneram animais? Por que um grupo humano - uma "tribo" indígena - escolhe um animal para expressar sua unidade, identidade e diferença relativamente a outros grupos? Nos tempos hodiernos, marcas de fábrica como a do produto francês La Chemise Lacoste - a célebre marca-símbolo de camisas de tênis (camisas pólo) cujo símbolo é um jacaré - demonstram que, antropologicamente, em sociedades que se consideram "avançadas", um curioso totemismo (industrial, agora) persiste. Esse fenômeno cultural-semiótico acontece não só no campo dos signos publicitários. Não emerge apenas no extremo cuidado com animais domésticos, como cães, gatos e até papagaios "que falam", por exemplo. Muitas vezes, são bichinhos simpaticos os símbolos de Olimpíadas, Copas do Mundo de Futebol e assim por diante. Em todos esses casos, "Freud explica", também! Pelo menos esse mestre vienense oferece pistas - cruciais, penso eu - para a diminuição da ignorância sobre as questões levantadas.

Brevemente - no início de novembro de 2009 (continuo agora a desenvolver a pesquisa atinente) - apresentarei alguns dados interessantes sobre a citada marca francesa, a Lacoste, que considero "muiraquitã" marcário-industrial. Abaixo, transcrevo texto primoroso elaborado pela Dra. Lais de Lima sobre um dos mais estudados trabalhos de Freud, Totem e tabu. Pela autorização para transcrição de seu artigo - uma reprodução com meta teórico-acadêmica, sem fins comerciais, portanto - agradeço penhorado.

No entendimento de S. Freud, o totemismo é um sistema que está na base da organização social de todas as culturas. Está claro que a percepção freudiana do mundo e das coisas ultrapassa (no caminho rumo a explicações muito abrangentes) os métodos clínicos - geniais - que descobriu, em benefício do menor sofrimento psíquico da humanidade como um todo e de cada um dos seres humanos que tiveram ou ainda têm a sorte de ter acesso a psicoterapias freudianas e pós-freudianas, vale dizer, em favor dos animais "não-irracionais", ainda que estes (nós) também sejam (sejamos) mamíferos aparentados com os grandes símios das florestas, savanas e matas de galeria do planeta (*). Na leitura atenta de Totem e tabu, de Freud, aprendemos o significado da expressão benfeitor da humanidade, conceito que, quando aplicado a esse mestre de Viena, pode ser considerado exato. E merecido, principalmente.

A psicanalista Lais de Lima, que estuda psicanálise lacaniana e trabalha no CRIA (Centro de Referência da Infância e Adolescência da UNIFESP/HSP), oferece-nos, no rigor da ciência que pratica, a muito feliz resenha que, na sequência, transcrevo.

(*) Cf. matéria informativa "Chimpanzé usa lança para caçar, diz estudo - Macacos do Senegal preparam galhos e afiam ponta para espetar pequeno primata. Jovens e fêmeas são principais caçadores; achado lança luz sobre evolução humana, Portal G1, 22.2.2007, 18h52, Ciência e Saúde - ANTROPOLOGIA" (!), http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL6951-5603,00-CHIMPANZE+USA+LANCA+PARA+CACAR+DIZ+ESTUDO.html.

 

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" 'Totem e Tabu' (1913)

                                                                                                                                                  Lais de Lima

Neste trabalho, Freud faz uma contribuição à antropologia social e constrói uma reflexão a respeito do Complexo de Édipo na origem da civilização. Aborda o mito da horda primeva e da morte do pai totêmico que levarão às hipóteses acerca da origem das instituições sociais e culturais, além da religião e da moralidade.
 

Segundo o autor, este artigo consiste numa tentativa de explicar questões da psicologia social, relacionando o totemismo aos vestígios da infância. Também procura compreender a passagem do clã totêmico para a família.

Escolhe como ilustração, principalmente, as tribos primitivas dos aborígines da Austrália. Nestas tribos, regia o sistema do totemismo (não existiam instituições sociais e religiosas), que teria como característica comum a exogamia (proibição de relações sexuais entre os membros do mesmo clã) conseqüente da proibição do incesto e fundamental para a preservação de toda a comunidade – “esses selvagens têm um horror excepcionalmente intenso ao incesto, ou são sensíveis ao assunto num grau fora do comum, e que aliam isso a uma peculiaridade que permanece obscura para nós: a de substituir o parentesco consangüíneo real pelo parentesco totêmico” (p.25).

O autor ressalta que a necessidade de proibição do incesto está intimamente ligada ao desejo de cometê-lo. “Os tabus, devemos supor, são proibições de antiguidade primeva que foram, em certa época, externamente impostas a uma geração de homens primitivos; devem ter sido calcadas sobre eles, sem a menor dúvida, de forma violenta pela geração anterior. Essas proibições devem ter estado relacionadas com atividades para as quais havia forte inclinação” (p.48).

Freud retoma sua teoria a respeito do Complexo de Édipo na qual afirma que a primeira escolha amorosa da criança é incestuosa, “assim, as fixações incestuosas da libido continuam (ou novamente começam) a desempenhar o papel principal em sua vida mental inconsciente” (p.35).

O autor ressalta a ambivalência presente nos tabus: proíbem algo que é desejado (desejo inconsciente nos membros da tribo, como nos neuróticos). Por este motivo, sua violação precisa ser vingada – os outros ficariam tentados a agir da mesma forma que o transgressor. “As mais antigas e importantes proibições ligadas aos tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do clã totêmico do sexo oposto. Estes devem ser, então, os mais antigos e poderosos dos desejos humanos” (p.49).

Freud define tabu como um termo que possui dois sentidos contraditórios: por um lado ‘sagrado’e por outro, ‘proibido’, ‘perigoso’. Uma característica comum dos tabus seria o temor de ter contato com ele (significado demoníaco).

O autor salienta que as restrições do tabu se impõem por conta própria, têm origem e fundamentos desconhecidos, não dependendo, por exemplo, de motivos divinos, como as proibições religiosas ou morais. “Wundt (1906,308) descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta um período anterior à existência de qualquer espécie de religião” (p.37).

Ao analisar os tabus dos povos primitivos, Freud constata que estes não divergem de alguns costumes de nossa sociedade. O autor estabelece, ao longo do trabalho, uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos e a psicologia dos neuróticos, apontando diversos pontos de concordância, principalmente, com a neurose obsessiva.

Entre as semelhanças dos tabus com a neurose obsessiva cita: proibições destituídas de motivos, misteriosas em suas origens; principal proibição é contra o tocar (entrar em contato com); restrições sujeitas ao deslocamento (substitutos) e transferência (risco de infecção, qualquer um que viola o tabu se torna ele próprio tabu); o fato de criarem atos cerimoniais e o desejo de violar a proibição persiste no inconsciente - já que existe uma atitude ambivalente frente ao proibido (temido e desejado).

Seleciona o que considera os principais tabus: aqueles que se vinculam aos inimigos (restrições sobre o assassino, punição e atos de purificação, cerimônias), aos chefes (proteger um governante e ser protegido dele; atitude de um selvagem para com seu governante provém da atitude infantil de uma criança para com seu pai) e aos mortos (conseqüência do contato com os mortos e de seu tratamento – analogia da infecção / hostilidade inconsciente é reprimida e projetada, transformando o morto em demônio e a necessidade de cerimoniais para se proteger).

Em todos estes tabus nota a presença de uma ambivalência emocional (dominância de tendências opostas) e afirma que as proibições seriam conseqüências desta ambivalência. “... a probabilidade de que os impulsos psíquicos dos povos primitivos fossem caracterizados por uma quantidade maior de ambivalência que a que se pode encontrar no homem moderno civilizado. É de supor-se que como essa ambivalência diminuiu, o tabu (sintoma da ambivalência e uma acordo entre os dois impulsos conflitantes) lentamente desapareceu” (p.79).

Freud, sem se aprofundar, também cita o que chama de senso de culpa tabu que surgiria toda vez que o tabu fosse violado e o relaciona à angústia e ao caráter do neurótico obsessivo.

Embora compare, em muitos momentos de seu texto, o tabu com a neurose, o autor salienta uma distinção entre eles, afirmando que o primeiro seria uma instituição social (cultural), enquanto que as neuroses teriam uma estrutura associal (as pulsões sexuais predominam sobre as sociais).

Freud destaca três características principais dos tabus: animismo (objetos inanimados são animados por espíritos e demônios – formação da idéia de alma que depois iria influenciar na origem das religiões), magia (decorrente da necessidade de controlar o mundo, como os rituais para produção de chuva e fertilidade – leis da natureza substituídas por leis psicológicas – compara com os atos obsessivos que têm um caráter mágico) e onipotência dos pensamentos (crença nos desejos – semelhante ao bebê que satisfaz seus desejos de uma maneira alucinatória).

 O autor associa estas características com o narcisismo (pulsões sexuais que catexizam o ego como objeto) e compara as diferentes concepções do homem em relação ao universo com as fases do desenvolvimento libidinal: a animista corresponderia à narcisista, a religiosa à escolha de objeto e a científica com a maturidade (renuncia ao princípio de prazer e volta-se para o mundo externo).

No capítulo IV, Freud volta a descrever o totemismo como um sistema que seria a base da organização social de todas as culturas. O totemismo seria assim, um sistema social marcado por relações de respeito e proteção entre os integrantes do clã e o totem a partir de normas de costume.

O autor ressalta a exigência de se respeitar severamente os tabus que protegem o totem, sendo qualquer violação punida por doença grave ou morte. Freud distingue o laço totêmico do familiar, afirmando que o primeiro é mais forte e é herdado pela linhagem feminina (a descendência paterna nem sempre é considerada). “‘Totem’ é, por uma lado, um nome de grupo e, por outro, um nome indicativo de ancestralidade. Sob o último aspecto, possui também uma significação mitológica” (p.114).

Freud retoma a questão da exogamia e a conseqüente proibição do incesto presentes no totemismo e os relaciona à teoria de Darwin, que afirma que a exogamia dos jovens do sexo masculino era a condição reinante da horda primeva (o ciúme do macho mais velho impedia a promiscuidade sexual - este ficaria com todas as fêmeas, expulsando os filhos à medida que cresciam).

O autor também salienta a semelhança entre as relações das crianças e dos homens primitivos para com os animais. Para exemplificar tal semelhança, retoma seu caso clínico, Hans, onde demonstra que os sentimentos ambivalentes para com o pai são deslocados para um animal - o mesmo ocorreria com o totem, que ocuparia o lugar de um ancestral, do pai primevo.

Afirma que tanto as psiconeuroses como o totemismo seriam os produtos das condições em jogo no Complexo de Édipo (ao longo do texto afirma que o início da religião, da moral, da sociedade e da arte também convergem para o Complexo de Édipo). “A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai (...) a atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta freqüência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai” (p.145).

A partir do mito da horda primeva, Freud descreve uma situação mítica em que os filhos expulsos matariam e devorariam o pai tirânico colocando fim à horda patriarcal - o fato de devorarem o pai fazia com que se identificassem com ele (adquiriam parte de sua força).

O autor destaca a presença de sentimentos ambivalentes dos irmãos perante o pai: ao mesmo tempo em que o odiavam (por representar um obstáculo aos seus desejos sexuais), o amavam e o admiravam. Esta ambivalência levaria a um sentimento de culpa: “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo... o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos” (p.146).

Freud dá grande ênfase à proibição do incesto, afirmando que ela precisou ser instituída para preservar a vida em grupo, uma vez que os desejos sexuais dividiriam os homens, impedindo sua união (todos os irmãos desejavam todas as mulheres para si, desejavam assumir o lugar do pai).

Assim, a proibição do incesto obrigava os irmãos a renunciarem às mulheres que desejavam e que tinha sido o motivo principal para se livrarem do pai, a horda patriarcal era substituída pela horda fraterna (“Não matarás!”).

Baseado no mito, afirma que a religião totêmica teria surgido a partir deste sentimento filial de culpa, “num esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que fora adiada” (p.148) e teria como finalidade impedir a repetição do ato que causara a destruição do pai real.

O autor constata que a ambivalência também persiste nas religiões: remorso e expressões de triunfo sobre o pai (festival rememorativo da refeição totêmica: o sacrifício do animal totêmico repetia o parricídio sempre que os atributos paternos ameaçavam desaparecer – compara com a comunhão dos cristãos).

A morte do pai da horda fez surgir um “ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele” (p.151). Este ideal seria encontrado nas religiões, em que a idéia de Deus representaria a de um pai glorificado e também afetaria as organizações sociais, de forma que a sociedade voltaria a se organizar numa base patriarcal (famílias). 

Bibliografia:

Freud, S. (1913) Totem e Tabu. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996" (Lais de Lima, http://www.palavraescuta.com.br/textos/totem-e-tabu-1913-resenha)

OBS. - Protegido por direitos autorais, o texto acima transcrito só pode ser transcrito com autorização de sua autora, Dra. Lais de Lima.

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