TIO FELICIANO

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 8

 

TIO FELICIANO

TIO Feliciano – Feliciano Gomes de Farias Veras –, a quem conheci em Parnaíba, foi, parece, o primeiro da família que ali aportou. Estivera, antes, no Maranhão, no comércio. Acumulara pequeno capital e fora estabelecer-se, ainda solteiro, naquela cidade piauiense. À medida que juntava dinheiro, comprava prédios. Ao fim de algum tempo era o maior proprietário urbano, recolhendo mensalmente um rendimento apreciável. Aproximando-se a velhice, abandonou o comércio e foi nomeado tesoureiro da Alfândega. Aposentou-se, afinal, nesse cargo, e recolheu-se à sua grande quinta, nos Campos, da qual tirava, ainda, alguma renda, com a verba de cocos, mangas e cajus. Era tido, por isso, como usurário, quando não era senão um homem prático e precavido, que se não sente na obrigação de dar a estranhos aquilo que lhe pertence. Dizia-se que passava a noite com o lápis e um pedaço de papel debaixo da rede, fazendo um traço cada vez que escutava, entre o barulho do vento no coqueiral, um estrondo na terra, e que, pela manhã, ordenava ao criado:
– Ó seu João! Vá juntar 22 cocos que caíram esta noite!
Casou-se. Eà história do seu casamento, contada por ele com a sua ironia impiedosa e com a sua voz de velho tenor fatigado, não faltava graça nem pitoresco:
– Esta senhora – começava, referindo-se à mulher, a quem não dava senão este tratamento respeitoso, mas que sublinhava com um tom de sar-casmo inclemente – esta senhora havia nascido na fartura e na opulência. Quando veio ao mundo, foi lavada em bacia de prata, na qual foram ati¬rados anéis e outras joias de ouro e brilhante, para que tivesse felicidade e fortuna. Esta senhora gostou de mim, e eu dela. Mas o pai e a mãe estavam esperando o imperador Carlos Magno ou um dos Doze Pares de França para lhe dar a filha em casamento. Quem era, meu caro senhor, quem era o pobre sr. Feliciano Veras para casar com a filha do ilustre sr. Mirandinha?
Essa oposição despertou nesta senhora o desejo de contrariar a família. Já era teimosa nesse tempo. Ocerto é que o sr. Feliciano Veras contratou uns remadores de confiança, alugou uma canoa que ficou ali no porto dos Tucuns, e foi raptar a filha do ilustre sr. Mirandinha... Mal o sr. Feliciano Veras apareceu no canto da rua, esta senhora saiu de casa e deitou a correr no rumo dos Tucuns. Tinha mais pressa em ser raptada do que eu em raptá-la. Corria tanto que eu quase não conseguia alcançá-la. Tomamos a canoa e subimos o rio. Pela madrugada desembarcamos em um casebre de palha desabitado, num braço do Parnaíba que eu nem sei mais aonde fica. Despachei os homens e fiquei só, com esta senhora. Quando amanheceu, vimos nas paredes do casebre pedaços de peixe seco, enfiados na palha. Lavei o peixe no rio, assei, e foi esse o nosso banquete de núpcias. No dia seguinte fomos casar em Araioses... Edesde esse dia, meu caro senhor, lá se foi o sossego da vida do sr. Feliciano Veras!...
Alto, forte, gordo, moreno, olhos azuis, cabeça quase inteiramente branca, mas sem o menor sinal de calvície – estigma que não assinalou jamais nenhum dos Veras –, tio Feliciano vivia, então, a sua vida de capitalista. Na sua chácara dos Campos, a casa confortável possuía um alpendre vasto e aberto, deitando para o jardim estrelado de rosas. Era ali, numa rede larga, que ele, o camisolão de dormir passado por cima da calça de brim pardo, consumia, antes de se aposentar, todas as suas tardes, lendo e bufando até anoitecer. Assinante de diversos jornais do Rio de Janeiro e do Maranhão, estava sempre ao corrente dos acontecimentos políticos e familiarizado com os nomes mais em evidência nas letras do país e do mundo. Eera aí que passava o dia inteiro, já depois de aposentado, e dava audiência, proferindo com humorismo sentenças bizarras, fora da lei mas dentro do bom senso e do bom humor. Quando o fizeram delegado de Polícia, um dia, apareceu-lhe um caboclo:
– Seu coronel, eu venho me queixar contra o meu vizinho o Antô¬nio Malaquias.
– Que fez o Antônio Malaquias, meu amigo?
– Tocou fogo no meu roçado.
Meu tio voltou-se para o interior da casa, pedindo uma caixa de fósforos. Trouxeram-lha. Eele, para o queixoso:Me mó r i a s 91
– Aqui está, meu amigo. Leve esta caixa de fósforos, e, por minha conta, toque fogo no roçado do Malaquias!
O seu tormento de toda a vida foi o conflito entre a sua misantropia e a afeição que a mulher dedicava aos parentes. Sem filhos, sem relações sociais que o caráter do marido não permitia, a senhora, pianista exímia, sentia, evidentemente, necessidade de desafogo, para o espírito e para o coração. Buscava-o, naturalmente, na intimidade dos seus, atraindo-os para a sua companhia. Ele, porém, não compreendia isso. E desforrava-se, nas suas palestras pitorescas e coloridas, com ironias e ditos joviais, emitidos sem sorrir, e falando sempre alto, e soprando, como quem chega na carreira, cansado. Conta-se que, certa vez, um dos cunhados que se achava no Maranhão, lhe telegrafou, urgente: “Apareceu aqui epidemia febre amarela. Sigo aí primeiro vapor”. Meu tio leu o aviso, tomou um pedaço de papel e respondeu, no mesmo instante: “Não venha. Aqui grassando peste bubônica”. E soprou com força, para desabafar.
Não podendo mais suportar a cidade e as relações que a vida urbana determina, entregou o velho Feliciano Veras a um dos parentes da mulher a chácara de Parnaíba, e embarcou para a vila de Araioses, onde mandou construir uma pequena casa de moradia. Elegeram-no prefeito municipal, e ele prestou consideráveis serviços à localidade, mandando edificar o mercado com dinheiro quase todo do seu bolso, pois que ele era mais rico do que o município.
– Ah, meu amigo – contava-me ele, mais tarde, no Rio de Janeiro –, eu nem lhe digo nada! Promovi uma festa para inaugurar o mercado. Mandei contratar uma banda de música de Parnaíba e comprar uma bandeira verde-amarela no Maranhão. E o meu maior trabalho, meu amigo, consistiu em convencer as caboclas de que não se dançava o Hino Brasileiro nem se podia fazer saia com aquela chita do pavilhão nacional!...
A sua permanência em Araioses não foi, todavia, demorada. Vivia lá sossegado, e quase feliz, entre gente simples, quando lhe surgiram visitas de Parnaíba, amigas e parentes da senhora, que não tinham notícias dela. Tímido como quase todos os ironistas, meu tio não fechou a porta. Recebeu-os. Dias depois, porém, entregava a casa aos visitantes, e, mandando construir outra, com apenas um quarto e uma cozinha em uma pequena ilha solitária do delta do Parnaíba, transferiu-se para aí com a esposa, indo viver, os dois, no mais absoluto isolamento. Opróprio vaqueiro residia em uma ilha próxima. Naquela em que ele morava só havia dois seres humanos: ele e a mulher. Quando algum parente ou amigo aparecia por lá a negócio, sob a condição de regressar no mesmo dia, era infalível a sua declaração:
– Daqui não saio senão puxado por Deus pelo cós da calça. Eaqui ficarei até o dia em que ouvir o canto do galo do meu vizinho... Não quero sair nem morto. Se aqui morrer, enterrem-me no pátio da casa, em pé, e de braços abertos. Depois, abandonem a ilha. Quero o silêncio! Quero a paz! Quero a solidão!
E soprava:
– Ufff!... Ufff!...
Um dia, o rio começou a encher, a subir, a transbordar. Os irmãos residentes em Parnaíba lembraram-se do velho misantropo e tratam de ir em seu socorro. Meu tio Franklin toma uma lancha e ruma para a ilha solitária. Aágua está a poucos metros da casa, mas o rebelado não aceita o auxílio:
– Não vou, meu amigo; não vou! – dizia, soprando. – Só sairei daqui quando puser um pé no batente da porta e outro na proa da canoa... Se quiser fundear a sua lancha ao largo, pode fundear. Mas daqui não saio.
E não saiu. O rio chegou ao pátio da casa, devastando tudo com a sua correnteza sinistra e gorgolejante. Mas o velho coronel Feliciano preferia morrer nas águas barrentas do Parnaíba a sofrer a intimidade impertinente dos que se metiam na sua casa.
Em 1915, estava ele no Rio de Janeiro, onde viera submeter a senhora a uma intervenção cirúrgica. Nessa viagem gastou duas ou três dezenas de contos de réis, alguns dos quais com o carro de fogo, nome que ele dava, pitorescamente, ao automóvel. Integrou-se na civilização. Arejou o espírito, atormentado por quarenta e tantos anos de cizânia doméstica. E regressou para Parnaíba, instalando-se, de novo, na sua chácara dos Campos.
A viagem fora-lhe, porém, fatal. O conhecimento de uma grande cidade, os exemplos que vira na pensão de que fora hóspede, e os conselhos recebidos daqueles que o marido hostilizava a vida inteira, deram ânimo à pobre e enferma senhora para romper com o velho companheiro.
Em Parnaíba, separaram-se, vivendo cada um em um lado da casa: ela, com os parentes; ele, sozinho. Em torno do ancião septuagenário uivaram todos os ódios e insultos. Ao fim de dois anos de velhice atormentada, ela morria. Quando o corpo estava pronto para ser conduzido ao cemitério, o médico, seu sobrinho e meu primo, Dr. Mirocles Veras, foi convidá-lo:
– Meu tio, o enterro de minha tia já vai sair... Osenhor não quer despedir-se dela?
– Não, meu amigo; muito obrigado... – respondeu no seu leito de doente.
E soprando, na sua dispneia de cardíaco:
– Já me havia despedido dela... Despedi-me em vida.
Ela morreu, e ele não a viu. O enterro saiu da mesma casa em que as duas almas agonizavam separadamente há dois anos, e ele não o acompanhou, nem quis olhar. Dias depois, chegava, porém, a sua vez. As síncopes, alarmantes, sucediam-se. Recuperando, de uma destas, os sentidos, pôs-se a recitar:
– “Quem passou... pela vida... em branca nuvem... e em plácido... dossel... adormeceu...”.
Outra síncope lhe interceptou a voz. Não concluiu. No dia seguinte saía da mesma casa em que morrera a mulher, e pela mesma porta, outro caixão.
Era o dele.