Teresina no engenho literário de Garcia

                Dílson Lages Monteiro*

José Ribamar Garcia consolidou-se ao longo das últimas décadas, em crônicas marcadas pela fusão entre a memória e  o humor,  como uma das vozes líricas que melhor traduzem a essência de uma cidade que se renova permanentemente. A comoção amorosa que manifesta pelo chão predileto se revela perceptível em Imagens da Cidade Verde, uma de suas  bem-sucedidas obras, reeditada e reimpressa várias vezes.

Nessa obra, concentra-se Garcia no registro de Teresina nas décadas de 1950 e 1960. Ao percorrer episódios transcorridos nesse tempo e local – alguns, aparentemente pessoais -, no fundo, o que intenta o narrador é projetar aos leitores o sentimento da saudade. Mais do que recordar, agrada-lhe  – e por extensão ao leitor – a sugestão, em                 “imagens soltas”, de um tempo, que “girando, girando”, traduz-se na ausência saborosa do que viu e viveu. Saudade de lugares, tipos e hábitos para sempre entranhados nas profundezas do pensamento e do afeto.

O registro das sensações e pensamentos nostálgicos de Garcia faz-se pelo levantamento de variadas percepções espaciais. Elas impõem-se “pelos sentidos do corpo humano quanto pelos sistemas tecnológicos rudimentares ou complexos, de observação, mensuração e representação”.

Nessa ótica, que cidade se desenha pelos sentidos do corpo em cada uma dessas crônicas? A cidade é a da infância e pré-adolescência. Projetada pela valorização dos espaços de sociabilidades e pela liberdade de se transitar. Também, pela ênfase a espaços fortemente determinados pela divisão de classes e pelo preconceito.

 A vida se concentra nas praças. Para elas, convergem gente e sentimento, a tal ponto que a maior parte do livro, proporcionalmente, versa sobre elas. A praça da Bandeira, coração da vida administrativa; a do Liceu, símbolo de modernidade; a Pedro II, a favorita; a Conselheiro Saraiva, a mais caótica e menos urbanizada.

As tecnologias também impulsionam olhares únicos. Misturam-se metonimicamente ao próprio lugar que representam. A usina elétrica, o trem, o avião, o ônibus e outras criações para a comodidade humana são os próprios lugares e sensações que simbolizam. Por meio delas, expõe-se uma indignação contida e o desmascaramento do pudor; este, traço muito característico da prosa de Garcia, como de sua própria personalidade, afeita ao riso e ao questionamento.

Mais do que lugares, a penitenciária, o Lindolfo Monteiro, o Getúlio Vargas, o Teatro 4 de Setembro, a Estação Ferroviária, o Aeroporto funcionam como elementos pelos quais extravasa, com lirismo, sua insatisfação. Nem que seja pelo humor gerado por situações desconcertantes.

Sobre a técnica de Garcia, em particular, a focalização de determinado logradouro serve como pretexto para que, em única crônica, possa o narrador passear por vários temas. Assim o realiza, como motivo para aliar o lirismo ao pitoresco, à crítica social, ao registro histórico-geográfico e ao humor, embora o lirismo predomine em grande parte dos textos.

De maneira paradoxal, consegue Garcia, ao desdobrar o foco da crônica em variados motivos para a escritura, alcançar a objetividade. A escritura das crônicas acaba por constituir-se de “flashs”, que geram uma visão geral do espaço retratado ou da situação narrada, posto que eles visam cristalizar uma dada reflexão na consciência do leitor, a partir da focalização de momentos, episódios ou lugares específicos.

De modo geral, em Imagens da Cidade verde, José Ribamar Garcia reconstrói o panorama social, geográfico e humano de uma Teresina acanhada, de hábitos provincianos e sem muitas perspectivas de mobilidade social. A partir da representação afetiva e social dos pontos geográficos que individualizavam a urbe de então, traça o narrador um painel sentimental do recanto natal. Nesse painel, desfilam valores, costumes e tipos que cercaram sua infância.

Imagens da Cidade Verde, de José Ribamar Garcia, é livro para ser lido e relido por quem ama Teresina. Obra para ser lembrada quando a “Cidade Verde” marca mais um x no calendário. Livro que, além de reunir crônicas estilisticamente primorosas sobre Teresina, permite-nos refletir, pelo resgate de um tempo passado, de que modo a relação entre a cultura e o espaço tem feito o que somos hoje.

Dílson Lages Monteiro é professor, poeta e ficcionista, eleito recentemente para a cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras.

        

Entrevista: a Cidade Verde em Ribamar Garcia

Dílson Lages - Ribamar, sua crônica em Imagens da Cidade Verde é marcada pela ênfase à memória. Nelas, tem-se um painel vivo de valores e costumes de uma Teresina que não mais existe, a Teresina de 1950 e 1960. Para o narrador, que Teresina é essa?

 

Ribamar Garcia - Como você bem assinalou, aquela Teresina dos anos  50 e 60,  que foi a da minha infância e parte da adolescência, não existe mais. Só existe na memória.   E foi esta Teresina que procurei retratar no meu livro “Imagens da Cidade Verde”. Era uma cidade provinciana, acanhada, romântica, cativante e mágica. Sua magia vinha das águas do rio Parnaíba, de suas lendas,  de seus coriscos e trovões viris, do pôr do sol mais lindo do Brasil, e do teresinense valente que enfrentava assombrações, como a “Num se Pode”, mas temia e se apavorava diante da tísica.

 

Dílson Lages - As praças se constituem em um dos elementos mais valorizados em Imagens da Cidade Verde. Que representação social o senhor espera que os leitores, os que viveram o tempo retratado e os de hoje, construam sobre as praças da Bandeira, Saraiva, Pedro II e do Liceu?

Ribamar Garcia - Quanto às praças, notadamente as da Bandeira, Saraiva, Liceu e Pedro II, além de palcos de romantismo e de certa  pureza, expunham uma segregação  social  silenciosa, resignada, mas explícita. Veja você: A Praça Pedro II era composta de dois planos. No primeiro plano,  parte de cima, em frente ao quartel da Polícia Militar, havia o coreto e os canteiros das plantas, e era frequentado pelas moças pobres e humildes, geralmente empregadas domésticas,  do comércio  e da Fiação (fábrica de tecidos, instalada quase à beira do Parnaíba). Enquanto no segundo plano,  parte de baixo, defronte ao Theatro 4 de Setembro e Cine Rex, desfilavam as moças e rapazes da classe remediada e rica, que não se misturavam com o pessoal da parte de cima. Isso era tão natural, que acabou   virando um costume.

 

Dílson Lages - A diferença de classes é tematizada em várias crônicas. Nesse sentido, há nas crônicas de Imagens da Cidade Verde valorização de figuras do povo, entre as quais se inclui o próprio narrador, em crônicas como “A penitenciária” e o “Clube do Diários”. O que era do ponto de vista da desigualdade social Teresina nas décadas de 1950 e 1960? 

Ribamar Garcia – Havia, como disse, uma segregação silenciosa e resignada. Aquele negócio de “conhecer o seu lugar” E de se conformar com essa, vamos dizer assim, norma consuetudinária.  Isso também era exposto no Clube dos Diários. Só entrava nele quem era sócio ou convidado de um sócio. Pobre não entrava. E negro só se fosse rico ou doutor – coisa rara na época.  Nos bailes ou nas festas  carnavalescas, o povo se contentava em ficar do lado de fora, observando pelo portão os foliões. No hospital  Getúlio Vargas existia uma ala dedica aos indigentes e aos que não tinha dinheiro para custear a internação e a cirurgia.

  

Dílson Lages - Imagens da Cidade verde constrói um painel vivo dos costumes e valores de Teresina em 1950 e 1960. Quais costumes e valores o senhor crê definem com maior exatidão a cidade de sua infância?

Ribamar Garcia - Diria que eram os valores relativos à honra. Embora o conceito de honra, especificamente, em relação à mulher era algo profundamente fundamentalista. Veja você: A moça que perdesse a virgindade estava condenada à execração pública. Essa não conseguia mais  casamento. E dependendo da estratificação social, era expulsa de casa, e, sem ter para onde ir, acabava indo ampliar a galeria dos cabarés da Rua Paissandu. Até a mulher que se  separava do marido, ou que vivesse em regime de união estável era discriminada. Homossexual, então, não tinha vez e o único assumido na cidade era um alfaiate. Também havia um culto à coragem e à valentia.  

 

Dílson Lages - Retratando Teresina das décadas de 1950 e 1960, a época de sua infância, o que o senhor elegeu como projeto literário, a fim de se distanciar de outros cronistas que escreveram sobre Teresina?

Ribamar Garcia - Sem dúvida, grandes escritores já escreveram sobre Teresina. Dentre eles Abdias Neves ( no romance “Um Manicaca”), Vitor Gonçalves Neto, A. Tito Filho (o cronista mor), H. Dobal, Carlos Said, Matias Augusto de Oliveira Matos, Rodrigo M. Leite (com sua “Cidade Frita) e vários outros. No entanto,   procurei registrar  em “Imagens da Cidade Verde” a cidade provinciana, romântica, acanhada e cativante por dentro,  revelando sua atmosfera, sua magia, seu espírito, através das ruas, dos logradouros, das lendas, dos hábitos e costumes dos teresinenses. Tentei fazer um Raio X da cidade de 120 mil habitantes.   

 

Dílson Lages - Avaliando a Teresina retratada em suas crônicas e a Teresina de hoje, que paralelo o senhor faz entre elas?

Ribamar Garcia - Teresina cresceu, desenvolveu-se e até ficou mais bonita, mas não tem magia. Aquela coisa que cativa e não se sabe porque se é cativado. A juventude não se reúne mais em clubes sociais, mas em shoppings e em boates. Isso não é mal, apenas novo hábito. A desigualdade social cresceu em proporções inadequadas em relação ao número de habitantes, atualmente, por volta   de 900 mil, sendo que quase a metade é de emigrantes, principalmente do interior do Estado. O teresinense não perdeu a hospitalidade, porém, está adquirindo a mania da ostentação, pecado decorrente da pobreza de espírito. A cidade deixou de ser verde e isso certamente deixaria triste o escritor maranhense Coelho Neto, que a denominou  de Cidade Verde. Mas. No entanto, algo animador é que a juventude leva a vida a sério, interessada, e preocupada com os estudos. Percebeu que só se consegue ser grande na vida através dos estudos. 

 

Dílson Lages - Ribamar, percebi em sua crônica paradoxalmente, uma busca rigorosa da objetividade.  Essa busca rigorosa pela objetividade é realmente uma meta sua do ponto de vista do estilo?

Ribamar Garcia -  Sinceramente, não sabia que a forma de eu desdobrar certos assuntos dentro do texto, mas sem perder a coesão e a coerência, atingiria a objetividade. Você tem razão. Só que faço isso intencionalmente. É claro que ao escrever, procuro ser claro, direto e objetivo, assim como fujo dos “lugares comuns” e de quaisquer clichês – que julgo abomináveis.  O desdobramento dos temas, a construção de frases curtas, às vezes, até sincopadas e as pinceladas de ironia, atribuo ao meu temperamento. Alguém já não disse que o estilo é o temperamento?  

 

Dílson Lages - O senhor transita por gêneros diversos: o conto, o romance, a crônica. Em qual desses gêneros o senhor se sente mais à vontade para a criação literária?

Ribamar Garcia - Creio que seja no romance, porque sinto mais liberdade e mais espaço para  relatar, dissertar, vaguear,  descrever cenários e pintar os personagens,  enfim, criar o que me proponho a fazer. E fazer sempre, buscando  uma verossimilhança e da melhor forma de contar. Entretanto, a crônica me serve para registrar acontecimento agradáveis e também desagradáveis, deixando-me livre para expressar minha opinião e até a indignidade, sem medo de cair na panfletagem. Já o conto, que acho muito difícil de fazer, utilizo quando quero contar uma história curta que não me exige muito fôlego.  

 

Dílson Lages - Para finalizar nossa conversa, o que é hoje afetivamente Teresina para o escritor José Ribamar Garcia?

 Ribamar Garcia - A Teresina do livro é uma lembrança que me persegue e me inquieta. E a atual, continua sendo uma das minhas paixões e vício. Um vício que  me revigora física e emocionalmente.