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 (*) Dílson Lages

Deixar as origens – a família, os amigos e principalmente a paisagem física de nascença – é tarefa, não raro, desagradável. Embora se possa constituir como o despontar de novos horizontes, de oportunidades jamais imaginadas, às vezes, abandonar o lugar em que nascemos, em que formamos nossos primeiros vínculos, faz arder mesmo os peitos aparentemente insensíveis.

Há muitos anos, deixei para trás minhas raízes em nome do crescimento pessoal. Ainda lembro o dia em que sai de casa para estudar fora, na dita cidade grande, cuja grandeza  hoje vejo é apenas do tamanho de minha imaginação. A expectativa foi assombrosa nos dias antecedentes à viagem. E maior, nas primeiras semanas na nova terra. Maior e dolorosa. O silêncio das ruas, substituído pelo trânsito das avenidas. O rio, pela correnteza de outro rio, agora violento, mais objeto de decoração da paisagem do que rio propriamente. As coisas organizadas para o anonimato e, mais tarde percebi, para o trabalho.

Hoje me vejo parte integrante da paisagem em que habito. Houve um tempo em que esta cidade era dor,  o sofrimento pela saudade de minhas raízes. Em meados de oitenta, quando aqui aportei, quase menino, buscava nos elementos humanos e físicos explicações suficientes para me justificar como personagem de minha própria história. Identidades se constroem, e eu precisava entender isso. Hoje moro na cidade verticalizada. A cidade de bens e serviços. A cidade dos trabalhadores. E parece que assimilei isso como minha motivação primeira.

Hoje mesmo me vejo é confundido com a nova paisagem. O suor que brota do empenho para construir uma cidade melhor, também, o meu suor.  A cidade atende pelo nome de Trabalho, até no slogan oficial, e também atendo pelo mesmo nome. Em cada texto que comento, em cada pesquisa ou leitura que realizo. O nome soa até a poesia, desfazendo inclusive o significado etimológico verdadeiro. Trabalho – respiro esta cidade; esta cidade me respira.

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Tenho comigo a intuição de que as pessoas se descobrem por que tinham que se descobrir. Não por acaso, encontro, digo, descubro, Matias Matos, ex-secretário municipal de Teresina em várias gestões e pesquisador  aposentado da Embrapa-PI, em uma livraria à cata de livro sobre memórias de Teresina, recém-lançado. Interpelo-o, a propósito do livro que lançou sobre a gastronomia nossa. Sou informado da pesquisa que vem realizando há vários anos sobre a principal avenida de Teresina, a Frei Serafim. Mais do que isso, trocamos ideias sobre a individualidade teresinense, sobre o que nos identifica como teresinenses, naturais ou por adoção. Eu, que vivo questionando a epiderme desta urbe, saí da livraria ansioso para degustar logo, logo as descobertas do pesquisador, assim que fosse a obra lançada.

Não compareci ao lançamento da obra. O trabalho não permitiu. Mas tratei imediatamente de comprar o meu exemplar. Lendo por diletantismo, lendo como quem lê para reler, passei a semana inteira dialogando com Avenida Frei Serafim – lembranças de um tempo que não acaba. Rico em fotografias que valem tanto quanto o texto, o autor juntou muitos  pedaços da memória teresinense. Matias Matos nos ensina a amar mais Teresina, a olhar mais para as suas belezas, às vezes, desfocadas pela pressa de nossas motivações.

Lendo com quem lê para reler, vejo-me como o “teresinense” que sou: descobrindo nas vias da cidade o brilho de meus olhos e o toque de minha respiração.

(*) Dílson Lages é editor do Portal Entretextos

Veja belas imagens de Teresina, reunidas em blog assinado pelo arquiteto Roberto Freitas:

http://www.meionorte.com/robertofreitas/teresina-de-antigamente-134919.html