Pelé na praia Pedra do Sal, no litoral do Piauí.
Pelé na praia Pedra do Sal, no litoral do Piauí.

[*João Luiz Rocha do Nascimento - especial para Entretextos]

O ano era 1971. Eu tinha 12 anos. Na praça Pedro II, naquela época, o Theatro 4 de Setembro funcionava como cinema e não como teatro.  Se a atração no Cine Rex não fosse boa, tinha a opção do Cine Theatro 4 de Setembro. Vi muito faroeste italiano estrelado por Giuliano Gemmna, Franco Nero e Antonio Steffen, este um brasileiro que fez sucesso no western spaguetti. Ao lado do Theatro 4 de Setembro, já na esquina da praça, havia um bar cuja estrutura era toda à base de carnaúba, daí o nome: Bar Carnaúba.  Foi ali que, numa das minhas passagens pela Praça Pedro II, eu tomei conhecimento de um fato que me deixou frustrado e que ocupou o centro da atenção da cidade naqueles dias: o jogo do Santos do Pelé contra um time local. Eu já tinha planejado ver o jogo a convite de um primo, de maior; meu pai já consentira. Nesse dia, demorei pouco vendo os cartazes dos filmes da semana no Rex e no 4 de Setembro, pois fui atraído pelo alvoroço que ocorria no Bar Carnaúba.  Não sei dizer exatamente quando ocorreu, sei que foi um ou dois dias antes da data marcada para o jogo.

O certo é que vendo aquele burburinho todo no bar Carnaúba, curioso, entrei no bar. O assunto era o jogo do peixe com o rubro negro piauiense, o adversário escolhido para pegar uma goleada do Santos. Que não ia mais haver. Isso mesmo. O jogo fora suspenso e é aí que entra um dos principais personagens dessa história. Refiro-me ao governador de então, o engenheiro Alberto Tavares Silva, famoso por colocar o Piauí no mapa do Brasil em plena ditadura militar. No seu governo, meio que emulando o “Brasil, ame-o ou deixo-o”, do regime militar, criou-se um bordão que foi parar nos vidros traseiros dos automóveis: “Piauí, conheça-o antes que você morra”, algo mais ou menos assim.  Funcionou. Durante muito tempo, isso serviu de referência e melhorou nossa autoestima. Nesse cenário, inclui-se a construção de um grande estádio de futebol (o Albertão), afinal o Brasil, com Pelé, tinha se sagrado tricampeão mundial há de dois anos, a realização do filme “O guru das sete cidades”, bem como a criação da Piemtur, empresa de turismo responsável pela divulgação das riquezas, belezas naturais e eternas ( e hoje desgastadas, porque a coisa vem de longe) potencialidades do estado do Piauí, isso sem dizer da contratação, a peso de ouro, de um conhecido  e autodenominado menestrel para divulgar um dos nossos principais produtos: o caju.

Pois bem. Voltando ao Bar Carnaúba, que também funcionava como uma espécie de rádio calçada e onde se traçava o destino das pessoas, algo parecido com o que ocorre hoje com o Café Senadinho do Teresina Shopping. A primeira coisa de que tomei conhecimento: a delegação do Santos estava hospedada bem pertinho dali, na quadra ao lado, na rua 13 de Maio, no antigo Hotel Piauí, creio que era esse o nome, próximo ao Salão Kennedy. Detalhe: no aeroporto desceram todos os jogadores do Santos, menos o principal deles: Pelé. Por que não haveria mais o jogo? Porque o governador Alberto Silva resolveu impor sua autoridade. Sem Pelé, não haveria jogo. Tava no contrato, dizia-se: sem Pelé, sem jogo. O governador não abria mão de sua decisão, afinal de contas o jogo, desconfiava-se, seria bancado pelo tesouro estadual, caso contrário não haveria justificativa para o cancelamento. O governador bateu o martelo. Não haveria jogo. Quem pagou as despesas do hotel e com o deslocamento dos jogadores da baixada santista para Teresina, não tenho a menor ideia, mas jogo não houve. Se na época tivesse sido feito uma pesquisa de opinião, creio que a população teria apoiado a decisão do governador. Pelo menos foi o que eu percebi naquele dia no Bar Carnaúba. E não era pra menos. Ver um jogo do Santos sem Pelé era o mesmo que ver um jogo do enxuga o rato, o Piauizão vibrante, no Lindolfo Monteiro sem a sua principal atração:  Simão Teles Bacelar, o Sima, nosso maior craque de todos os tempos. Sem Pelé, sem jogo.

Tudo isso eu soube ali, na conversa dos adultos, no Bar Carnaúba. Nem tive coragem de passar na frente do Hotel Piauí pra ver os jogadores. Havia perdido o interesse, tamanha a frustração que se abateu sobre mim quando soube que o Pelé não acompanhou a delegação. Vi-o jogar somente na televisão da vizinha durante os jogos da copa do mundo de 1970, no México.  Era a minha chance, perdida, de vê-lo em carne e osso pegando na pelota para balançar a rede do estádio Lindolfo Monteiro. Esse jogo entrou para a história como o jogo que não houve. Sem Pelé, sem jogo.  Na época, pelo pouco que entendi, era como se a ausência do rei representasse uma falta de consideração para com o povo piauiense, uma desfeita para com o nosso estado, que passou para a história como o único da Federação que não teve o prazer de ver o rei Pelé jogar em seus gramados. Piauí: conheça antes que você morra, assim dizia a propaganda.

Tempos depois tudo foi esclarecido: Pelé não acompanhou a delegação do Santos por conta de um estiramento muscular, na linguagem futebolística: contusão. Nesse caso, de nada adiantaria vir mesmo. Ficaria no banco. Não entraria em campo, o que era mesmo que nada. Não sei bem ao certo como as coisas aconteceram na época. Mas, pelo que se soube depois, houve umas  tratativas diplomáticas no sentido de salvar o jogo, mesmo sem Pelé. Especula-se que uma delas defendeu a ideia de que o jogo deveria ser realizado, com o compromisso de que, no futuro, haveria um novo jogo, com a participação do rei. De nada adiantou. Sem Pelé, sem jogo, o governo bateu o martelo, correu a notícia. E acabou que na época, no calor da discussão, meio que ficou aquela a impressão ruim, talvez alimentada pela nossa histórica baixa estima: fora uma desfeita. E eu, sendo apenas um menino, naquele dia, não tinha como compreender exatamente a verdade dos fatos, tanto que acabei reproduzindo o senso comum teórico da época. Cheguei a pensar, não vou mentir, que o rei estava fazendo corpo mole, expressão muito utilizada quando se percebia que, em verdade, um jogador não queria jogar.

Mas, como disse acima, a impressão inicial de desfeita foi desfeita diante dos fatos.  Consta que o próprio governador Alberto Silva, tempos depois, teve a exata compreensão do sucedido. Não fora desfeita. Talvez tudo não tenha passado de um mal entendido, um problema de comunicação. Para o nosso alívio. Porque o rei não mereceria isso. E sucedeu que o Pelé acabou visitando o Piauí não exatamente para jogar, mas para outros compromissos. Conheceu-o, nosso estado, em vida. Para o nosso alívio, pois assim dizia a propaganda. Piauí: conheça antes que você morra.

 

Teresina, 31.12.2022.

J. L. Rocha do Nascimento

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*João Luiz Rocha do Nascimento é contista, magistrado, professor universitário do campo do Direito.