[Flávio Bittencourt]

Teoria do Folclore: Elizabeth Travassos comenta livro de Luis Rodolfo Vilhena

Em livro de 1997, L. R. Vilhena sustenta que o sucesso do folclore como ação mobilizadora foi a outra face da moeda do seu fracasso como ciência.

 

 

 

 

 

 

 

 

Celso Castro e Karina Kuschnir divulgaram

sua homenagem a L. R. P. Vilhena e A. M. B. Cavalcanti:

  

"Luis Rodolfo da Paixão Vilhena e  
e Ana Maria Bezerra Cavalcanti  (1963-1997)

 

Homenagem aos amigos e à obra do antropólogo e cientista social 

 

Passados dez anos da morte de Rodolfo e Ana, a melhor maneira que encontramos para homenageá-los foi criar esta página. Com isso, desejamos que os escritos de Rodolfo continuem mais vivos do que nunca.

Os que tiveram o privilégio de conhecer Ana e Rodolfo em vida sabem bem a dimensão dessa perda.

Esperamos que encontrem também aqui um espaço de conforto para tamanha saudade. 

Agradeço a todos que têm enviado comentários e novos textos para o site! 

Rio de Janeiro, dezembro de 2008.

Celso Castro e Karina Kuschnir 

 

Pequena Biografia 

Luís Rodolfo da Paixão Vilhena nasceu no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1963. Concluiu em 1985 o curso de Ciências Sociais no IFCS/UFRJ. Obteve os títulos de Mestre (1988) e Doutor (1995) em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, sob a orientação de Gilberto Velho. Foi pesquisador do Instituto Nacional de Folclore da Funarte/Ministério da Cultura entre 1988 e 1989, professor do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) desde 1989 e do Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) desde 1994. Teve publicadas sua dissertação de mestrado, O mundo da astrologia; um estudo antropológico (Jorge Zahar Editor, 1990) e sua tese de doutorado, Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964), que recebeu o Prêmio Sílvio Romero de 1995 (Ed. FGV/Funarte, 1997).

Ana Maria Bezerra Cavalcanti nasceu no Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1963. Concluiu em 1985 o curso de Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Trabalhou em diversos projetos ligados à organização e preservação de acervos documentais históricos.

Ana Maria e Luís Rodolfo faleceram em um acidente ocorrido em 29 de maio de 1997.

Postumamente, cinco trabalhos de Rodolfo foram reunidos por amigos em Ensaios de antropologia (Ed. UERJ, 1997).

Como homenagem, a biblioteca da pós-graduação e a turma de formandos de 1998 em Ciências Sociais da UERJ receberam seu nome'.

 (http://sites.google.com/site/luisrodolfovilhena/home)

 

 

 

 

 

                  HOMENAGEANDO AS SAUDOSAS MEMÓRIAS DE L. R. P. VILHENA

                  E DE A. M. B. CAVALCANTI E AGRADECENDO A

                  ELIZABETH TRAVASSOS, DA UNIRIO, E A

                  SERGIO MICELI, DA USP, PELAS COMPETENTES RESENHAS

                  SOBRE O LIVRO ELABORADO A PARTIR DA NÃO MENOS COMPETENTE

                  TESE DOUTORAL DE LUIS RODOLFO VILHENA

 

 

 

 

16.12.2010 - As mortes de Luis Rodolfo da Paixão Vilhena e Ana Maria Bezerra Cavalcanti, em acidente de ônibus, em 1997, ainda não foram assimiladas pelos admiradores de seu trabalho (e aqui se fala daqueles não eram seus parentes, nem amigos, apenas dos leitores de seus trabalhos acadêmicos) - Na obra anallisada, há transcrições de depoimentos emocionados de colegas, amigos e familiares do autor do livro Projeto e Missão. O Movimento Folclórico Brasileiro, 1947-1964. Para dizer a verdade, considero que só será razoável concordar ou discordar de posições teóricas de L. R. Vilhena depois de que haja convicção de que a tristeza pelo seu falecimento esteja, em nós, menos presente: antes disso, haveria um silêncio sobre aquilo que fala mais alto, vale dizer, a lamentação de que ele e A. M. B Cavalcanti tenham partido por assim dizer antes da hora. [*]  F. A. L. Bittencourt ([email protected])

 

[*] - Concordamos com L. R.  Vilhena no que diz respeito a uma não-cientificidade do campo dos estudos sistemáticos de produtos do âmbito do "folclore", da "cultura popular", das atividades consideradas "artesanais" (em oposição aos produtos da indústria cultural), - da folclorogia, em suma - acrescentando que [assim pensamos e isso não significa, em absoluto, discordância dos estudos de Vilhena] à construção de objetos de pesquisa hauridos no seio da cultura popular, sob uma investigação, por exemplo, da semiótica da cultura, não faltaria cientificidade (L. R. Vilhena foi um antropólogo, não um semioticista da cultura, como acontecia com I. Lotman, por ex., na fundação, aliás, desse campos de estudos rigorosos). É interessante lembrar que, na origem do estruturalismo do século passado [e não nos consideramos, em absoluto, adeptos dessa corrente teórica], tornado célebre por autores como C. Lévi-Strauss, J. Lacan, L. Althusser, R. Barthes e vários outros, estão as conhecidas classificações dos contos populares russos, de V. Propp (primeira metade do séc. XX). Em nossa dissertação de mestrado não abordamos esse campo de estudos. Num dos capítulos daquele trabalho final, contudo, um dos livros de C. Lévi-Strauss foi consultado (orientação: Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro, da PUC-SP, tendo a Prof. Drª. Maria Lúcia Santaella Braga participado do exame de qualificação e, da banca de arguição, além do muito paciente e generoso Orientador da Dissertação, os Profs. Drs. Noval Baitello Jr. e Eduardo de Castro Neiva Jr., cujas anotações sobre a dissertação guardo até hoje). Apenas para mostrar que não houve, de nossa parte, recusa completa do estruturalismo, na controvérsia ali abordada, "tomamos partido" de posições de Lévi-Strauss, mas se falava do totemismo - e não dos fundamentos últimos do estruturalismo, ao qual por assim dizer "preferimos" - por razões teórico-críticas, a semiótica da cultura de extração eslava. Essa discussão estaria no centro de projeto de tese doutoral, que, por excesso de trabalho [DIFICULDADE DE OBTER AFASTAMENTO DO SERVIÇO PARA PROSSEGUIR ESTUDOS EM NÍVEL DE PÓS-GRADUAÇÃO], para que seja garantida a sobrevivência, não desenvolvemos, infellizmente (mas o projeto não está ausente de nossos planos biográfico-pessoais, desde que surja a possibilidade da citada licença do serviço ativo [QUE ACONTECEU, NO TEMPO MESTRADO, EM RAZÃO DA IMPLANTAÇÃO, no início da segunda metade da década de 1980, DO Programa de Pós-Graduação no Pais, DO BANCO DO BRASIL S. A., onde este colunista trabalhava, como funcionário concursado). F. A. L. B.

 

 

 

 

RESENHA DE ELIZABETH TRAVASSOS

SOBRE LIVRO, PUBLICADO EM 1997,

DE LUIS RODOLFO VILHENA

 

 

"[Revista] Mana

Mana vol.4 n.1 Rio de Janeiro Apr. 1998

RESENHAS

 

VILHENA, Luis Rodolfo. 1997. Projeto e Missão. O Movimento Folclórico Brasileiro, 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getulio Vargas. 332 pp.

 

Elizabeth Travassos
Profa. de Etnomusicologia e Folclore, UNIRIO

 

 

O "movimento folclórico" de que trata o livro em questão abrange uma série de empreendimentos de um grupo de intelectuais que almejava, entre outras coisas, o reconhecimento do folclore como saber científico. Organizados em 1947 na Comissão Nacional de Folclore (CNFL), eles ramificaram o movimento em comissões estaduais, promoveram congressos e viabilizaram a criação, em 1958, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, órgão executivo ligado ao Ministério da Educação. O livro de Luis Rodolfo Vilhena propõe uma abordagem etnográfica da rede de folcloristas conectados à CNFL durante o período de sua mais intensa atividade. Apresentado originalmente como tese de doutorado em Antropologia (PPGAS/ UFRJ) e laureado com o 1o prêmio no concurso Sílvio Romero (Funarte) de 1995, o trabalho traz à tona personagens pouco conhecidos dos cientistas sociais contemporâneos e dialoga com as pesquisas que examinam a história das ciências sociais e o "pensamento social" no Brasil.

Uma das impressões marcantes da leitura é a capacidade do autor de tornar reveladoras fontes que poucos seriam capazes de tratar como "preciosas" (:26): a correspondência e as publicações seriadas da CNFL. Embora a produção intelectual que veiculavam tenha envelhecido em algumas décadas, o livro argumenta que o movimento folclórico não pode ser ignorado pelos estudiosos que se interessam pelo "desenvolvimento do campo intelectual brasileiro" (:30). Em seu interior, a história das ciências sociais e a história da antropologia constituem duas dimensões da contextualização proposta pelo autor. Um de seus objetivos é entender como se cristalizou a imagem dos "diletantes exóticos anacrônicos" dedicados à produção de um saber falido como ciência, pois o movimento, apesar disso, "faz parte do nosso pensamento social [e] foi responsável pela constituição do campo intelectual no qual nos situamos e agimos hoje" (:268).

A tese central de Vilhena sustenta que o sucesso do folclore como ação mobilizadora foi a outra face da moeda do seu fracasso como ciência. A explicação mais comum do fenômeno consiste em apontar a debilidade teórico-metodológica da pesquisa de folclore, produtora de ideologia, não de conhecimento. Para o autor ela é insuficiente na medida em que os folcloristas tinham muita coisa em comum com outros intelectuais de seu tempo: tomaram a formação da nação como problema básico dos estudos da cultura, apostaram em um modelo de institucionalização vinculado estreitamente ao Estado e elegeram temas de investigação que estiveram presentes, sob outro ângulo, nos trabalhos de sociologia e nos chamados estudos de comunidade.

O capítulo 1 abre o debate metodológico com a historiografia das ciências sociais, particularmente com as perspectivas "sociológica" - que tende a encarar o interesse pelo folclore como um componente da ideologia de elites rurais decadentes - e "institucional" - que atribui a incapacidade de conquistar espaço nas universidades ao caráter pré-científico do saber produzido por folcloristas. Retomado nas conclusões do capítulo 5, o debate emoldura a etnografia do movimento folclórico, na qual são focalizados: a rede de comissões (capítulo 2); as divergências entre folcloristas e sociólogos (capítulo 3); o ethos do movimento (capítulo 4).

O capítulo 2 mostra que os folcloristas consideravam a institucionalização fundamental, porém não necessariamente nos moldes de uma agremiação acadêmica. A CNFL e seu presidente, Renato Almeida, expandem a rede por meio de comissões estaduais de folclore e adotam a prática de envolver colaboradores do interior, mesmo que fossem diletantes. Do seu ponto de vista, a falta de especialização profissional seria compensada pela intimidade com a cultura rural e interiorana. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro consagra, em seguida, o modelo de instituição que arregimenta curiosos, conta com apoio estatal e coloca os intelectuais na proximidade do campo político.

Paralelamente à luta pela institucionalização desenvolviam-se processos correlatos de delimitação das fronteiras da ciência do folclore e de estabelecimento da identidade de folclorista científico. Ambos os processos dependiam da autonomização do folclore em face da literatura e da história, campos que tradicionalmente englobavam o pensamento sobre a cultura popular. Inaugurada no final do século XIX por Sílvio Romero, a tensão entre literatura e ciências sociais teve vida longa na história dos estudos de folclore, deixando marcas em Amadeu Amaral e Mário de Andrade.

Parte decisiva do processo de delimitação de fronteiras é examinada por meio da análise das posições de Florestan Fernandes, engajado na polêmica com o folclore. Atento à evolução dos argumentos do sociólogo, Vilhena procura capturar a complexidade dos fatores que frustraram o projeto dos folcloristas. De um lado, a concepção de sociologia que predominou inicialmente nas universidades brasileiras destacava as deficiências de rigor científico dos trabalhos de folclore. De outro, divergências metodológicas entre folcloristas e sociólogos estavam entrelaçadas a concepções distintas da formação nacional. Enquanto os primeiros orientavam as pesquisas na direção das formas que evidenciassem fusões e sincretismos culturais, os segundos indagavam o grau de integração das camadas sociais e grupos étnicos (:167). Finalmente, a "tradição cultural nascente" que os participantes do movimento prezavam não tinha relevância para aqueles que, na linha dos folcloristas europeus, consideravam folclóricos os fenômenos identificados com um estrato cultural muito antigo. Assim, o movimento distanciou-se também das concepções européias e norte-americanas que adotam, respectivamente, os critérios básicos de antiguidade e oralidade na definição de folclore. As discordâncias devem-se, mais uma vez, ao peso das preocupações com a nacionalidade. Sob a égide dos relatos de fundação do Brasil a partir dos três povos formadores, o tema privilegiado pelos estudos de folclore passou da poesia popular à música e em seguida aos "folguedos". O deslocamento revela, segundo o autor, a busca de um objeto que sintetizasse as três matrizes culturais.

Na descrição do ethos dos folcloristas estão as passagens mais originais do livro, que abordam de forma inusitada as práticas de um setor da intelectualidade, como sua maneira de organizar congressos e seu comportamento nesses eventos. A estratégia de mobilização que valorizava intelectuais espalhados em todo o território nacional estava afinada com o empirismo documental e com a ênfase na coleta em detrimento da conceituação. A tolerância com o colaborador sem especialização profissional, porém espacial e afetivamente próximo da realidade cultural que documenta, fez entrar pelos fundos o amadorismo que o folclore científico quisera expulsar.

À pesquisa somavam-se ações em prol da preservação do folclore e de sua disseminação por meio das escolas. Os participantes do movimento acreditavam que o caráter intervencionista e "artificial" dessas medidas seria compensado pelas possibilidades de "vivência" do folclore nas festas e brincadeiras infantis. Inclusividade, engajamento na defesa de tradições ameaçadas e desprendimento missionário refletiam-se na idéia de "fraternidade folclórica" sublinhada por Renato Almeida. Assim, o espírito comunitário atribuído ao povo estaria espelhado na prática dos estudiosos: "o próprio modelo do movimento folclórico [...] teria por inspiração elementos da cultura folclórica brasileira" (:222). O pesquisador seria ele mesmo um homem "simples" que se identifica com a realidade que estuda. O movimento folclórico produziu, em resumo, um projeto paradoxal de ciência marcado pela "santa continuidade" registrada na epígrafe ao livro: uma ciência em que não há diferença marcante entre leigo e cientista, entre objeto e sujeito de conhecimento, entre participação festiva no folguedo e observação treinada.

Finalmente, o movimento teria ocupado também um lugar "intermediário" no campo intelectual brasileiro, tanto do ponto de vista conceitual quanto institucional. Mais uma vez, a noção de continuidade é a chave para entender a rede de intelectuais que, simultaneamente, conceberam um projeto e assumiram uma missão. Situados cronológica e conceitualmente entre a descoberta da originalidade da cultura mestiça e a percepção do Brasil como país subdesenvolvido, os folcloristas persistiram na discussão da primeira, mas preocupavam-se com o destino das frágeis "tradições nascentes". Entre a institucionalização nos centros mais desenvolvidos do país e a identificação com uma região, o movimento buscou a unidade nacional na diversidade regional.

O livro foge da repetição de estereótipos que cercam os folcloristas, sobretudo porque rejeita explicações deterministas e unilaterais. Assim, se o autor privilegia a abordagem "internalista" dos estudos de folclore, não limita sua análise à discussão do ideário, acionando simultaneamente o exame das ações, formas de institucionalização e de mobilização ampla, relações com as ciências sociais e teorias internacionais de folclore. A opção pelo estudo do movimento significou deixar de lado a tradicional análise da obra intelectual de personagens centrais, como Renato Almeida, mas isto provavelmente desviaria o autor do objetivo de focalizá-lo no desempenho do papel de mentor da CNFL.

Por fim, é impossível ler o livro sem ser tocado pelos depoimentos emocionados dos colegas e da família de Luis Rodolfo Vilhena, surpreendidos pelo acidente trágico que interrompeu subitamente os trabalhos que vinha desenvolvendo, alguns deles como desdobramentos de sua investigação detalhada do movimento folclórico.

  

[REVISTA]  Mana

Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão
20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil
Tel.: +55 21 2568-9642
Fax: +55 21 2254-6695

".

 

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100015)

 

 

 

 

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SERGIO MICELI, DA USP,

PRODUZIU RESENHA DO

MESMO LIVRO DE

LUIS RODOLFO VILHENA
 

 

 

 

"PROJETO E MISSÃO - O MOVIMENTO FOLCLÓRICO BRASILEIRO 1947-1964

 

Disciplina de amor

Sergio Miceli (*)

No primeiro semestre de 1964, como calouro em ciências sociais da Escola de Sociologia e Política da PUC (Pontifícia Universidade Católica) carioca, fui me iniciando em antropologia guiado pelos ensinamentos de um professor competente, de trato suave, o folclorista e antropólogo Manuel Diégues Jr. Estranhei um pouco o jeitão enciclopédico do programa, abarcando um colosso de monografias sobre as sociedades mais díspares e, aos olhos de um neófito, muito dessemelhantes umas das outras. À medida que a matéria avançava, o aluno começava a desentranhar daqueles relatos etnográficos, bastante esquisitos, um projeto de conhecimento. Diégues valia-se daquele catatau de evidências para nos transmitir um saber de compaixão, atento quer às diferenças nos modos de expressão dos nativos, quer às instâncias que iam conformando uma inteligibilidade peculiar dos universais da experiência humana. Naquele curso, a antropologia cultural norte-americana, mistura de teorias difusionistas e análises do caráter nacional, dava surra na sociologia durkheimiana e na antropologia social inglesa.
O livro de Luís Rodolfo Vilhena examina com argúcia a ascensão e o declínio do movimento que abrigava essa nova categoria de "intelectuais de província", os folcloristas. Após um capítulo de abertura onde o autor dialoga com estudos recentes nos campos do pensamento social brasileiro e da história das ciências sociais, os capítulos 2 e 4 efetuam uma reconstrução caprichada dos caminhos de institucionalização do movimento folclórico, e os 3 e 5 exploram as polêmicas envolvendo folcloristas e sociólogos da escola paulista. Os tópicos desse sumário revelam o projeto de resgatar o lugar do folclore no conjunto das ciências sociais, salientando, por exemplo, sua proximidade com a antropologia culturalista então em voga. Todavia, seria preciso antes balizar o movimento folclórico que emergiu impulsionado pelo processo de redemocratização no pós-guerra, alcançando seu apogeu em pleno regime populista, e o seu canto de cisne às vésperas do golpe de 64.
Buscando dar continuidade a iniciativas vinculadas às lideranças dessa área de estudos (Mário de Andrade, Artur Ramos, Câmara Cascudo) ao longo dos anos 30 e 40, Renato Almeida -então chefe do Serviço de Informações do Ministério das Relações Exteriores-, aproveitou-se de compromissos assumidos pelo governo brasileiro na montagem da Unesco para criar sob sua direção, em 1946, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc). O mais ativo colegiado nesse âmbito foi justamente a Comissão Nacional de Folclore, reunindo a nata dos especialistas e entusiastas (Diégues Jr., Joaquim Ribeiro, Édison Carneiro, Cecília Meireles). Por intermédio das subcomissões estaduais, das semanas de folclore e, em especial, dos congressos, foi tomando vulto uma extensa rede de folcloristas que passaram a operar em escala nacional.
As metas de expansão do movimento acabaram desaguando na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, instituída pelo presidente Kubitschek, em 1958, reaproveitando em seu conselho técnico o "estado-maior" da Comissão Nacional de Folclore. A gestão marcante de Édison Carneiro, nomeado para a direção da entidade pelo governo Jânio e mantido por Goulart, foi interrompida pela Revolução de 64. A perda do apoio político e financeiro junto às autoridades determinou o declínio irreversível do movimento.
Embora Vilhena carregue nas tintas das causas responsáveis por seu desmoronamento institucional, despolitizando seu objeto de análise, a perda de terreno e o consequente esvaziamento do movimento têm muito mais a ver com a natureza das suas bandeiras em prol de uma cultura popular "incontaminada" num momento de expansão acelerada da indústria cultural. O exame das concepções teóricas em que se inspiravam os estudos de folclore poderá deslindar o significado dessa postura regressiva e conservadora. Para tanto, basta averiguar os focos de tensão entre os folcloristas do movimento e os cientistas sociais universitários. O segredo do debilitamento intelectual e do progressivo isolamento político do movimento folcórico está contido no âmago dessa discussão.
O conteúdo desses debates é esclarecido pelas definições contrastantes do objeto de estudos reivindicado por folcloristas e cientistas sociais e pelo teor substantivo do que uns e outros entendem pelo que seja cultura. Revidando àqueles cientistas sociais -Florestan Fernandes, Roger Bastide etc.-, que mediam a "cientificidade" de uma disciplina pela sua capacidade de definir um objeto específico e autônomo, a "Carta do Folclore Brasileiro", documento militante do primeiro congresso (1951), reformatou o "fato folclórico" numa paráfrase prolixa à fórmula de Durkheim, visando justamente integrá-lo às "ciências antropológicas e culturais".
Primeiro, o fato folclórico seria coletivo, anônimo e essencialmente popular, incluindo ocorrências "espirituais" (trovas, ditados, canções etc.) e cristalizações na cultura material; contrariando o nervo da concepção durkheimiana, um segundo registro o definia como "maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição oral e pela imitação e menos influenciado pelos círculos e instituições". Esse empenho em tornar o folclore palatável às cobranças dos cientistas sociais não conseguiu oferecer uma resposta satisfatória às restrições quanto ao modo de produção dos fatos culturais, quanto à jurisdição de autoria social ("essencialmente popular", embora não exclusivamente), quanto à fonte da legitimidade cultural. O povo, sujeito onisciente da cultura autêntica, fora entronizado e tornado imune às ingerências de escolas, igrejas, academias e, vejam só, à ação deletéria perpetrada pela indústria cultural nascente. Nem assim tais malabarismos de auto-enquadramento disciplinar lograram sustar reações indignadas, seja no interior do movimento por parte daqueles mais aferrados à ortodoxia do folclore como efervescência originária, seja entre alguns cientistas sociais que vislumbraram nessa dilatação do objeto uma ameaça de invasão de domínios.
Num momento de afirmação de modelos sociológicos nucleados nas conexões entre as formas de organização da sociedade e suas expressões nos domínios da atividade política e simbólica, o embaço analítico dos folcloristas prendia-se ao enfoque exacerbadamente culturalista dos seus objetos e não às instâncias por eles privilegiadas. Vilhena mostra muito bem a transição desde os trabalhos de Silvio Romero, voltados para a poesia popular, passando pela ênfase concedida por Mário de Andrade e Renato Almeida à música popular, até se chegar aos folguedos como eventos de síntese entre a poesia, a dança, a representação, a vestimenta, a culinária. Mas não residia nisso o núcleo da dissensão entre folcloristas e cientistas sociais.
Bastide, por exemplo, louvava os avanços conceituais já referidos e criticava a antropologia norte-americana, apreciada pelos folcloristas, por situar a sociedade "como uma parte da cultura", ao invés de "tomá-la com seu pólo (...) num conjunto dialético", instando-os a se valerem do método sociológico, "uma vez que o folclore não flutua no ar, só existe encarnado numa sociedade". Esse desacerto entre tradições teóricas e disciplinares estava lastreado em concepções distintas quanto à fecundidade explicativa da estrutura social. Em vez de se limitar a enxergar os folguedos como manifestações "mestiçadas", Bastide preferia interpretar o cateretê e a dança de Santa Cruz como formas de catequese dos jesuítas em relação aos indígenas de suas missões ou então definia os folguedos de influência africana como estratégias de dominação de senhores de escravos e do clero, empenhados em incentivar as manifestações musicais dos negros para "manter a rivalidade entre nações" ou propiciar momentos de lazer que os recuperassem do estafante regime de trabalho. Bastide demonstrava que as clivagens econômicas e raciais produzidas pela escravidão eram determinantes se comparadas às diferenças das manifestações folclóricas dos mesmo grupos. Em lugar de realçar os aspectos de congraçamento comunitário como tendiam a fazer esses últimos, Bastide procurou mostrar que o folclore não misturava nem as cores nem as classes numa sociedade fortemente estratificada como a nossa.
Argumentando à maneira de um tumultuado durkheimiano de estrita observância, se é que existe tal confissão, Bastide advertia para as bases sociais das manifestações folclóricas em vez de analisar apenas a forma desses eventos. O golpe de misericórdia na concepção de uma sociedade brasileira resultante da integração cultural sincrética de três troncos étnicos foi desferido justamente pela famosa pesquisa coordenada por Bastide e Florestan sobre relações raciais em São Paulo. Eis alguns dos fatores responsáveis pelas incompatibilidades entre o movimento folclórico e a sociologia paulista, impasse por meio do qual o folclore foi se tornando uma interpretação relegada do país, encontrando resistências no interior da universidade. As polêmicas contribuíram para consumar sua desqualificação por figuras destacadas da sociologia paulista, que vinham modelando os padrões de legitimidade acadêmica e científica.
Resta examinar as estratégias de que se valeram as lideranças do movimento com a finalidade de convertê-lo numa política cultural preservacionista das manifestações de "cultura popular". Nessa perspectiva, as escolas de samba, por exemplo, não mereceriam esse qualificativo. Tendo sua estrutura legalmente oficializada, registradas em cartório, dotadas de uma liderança burocrática, envolvidas em disputas por prêmios e prestígio e, pior, dispondo de compositores com nome próprio, essas escolas teriam perdido a atmosfera "comunitária" original dos batuques e rodas de samba da gente do povo, comprometendo o caráter prevalentemente oral e inacabado da criação popular. Como bem demonstra Vilhena, essa incapacidade de incorporar as transformações desencadeadas pela expansão da indústria cultural, resistindo a qualquer indício de reprodutibilidade técnica, tornou os folcloristas defensores de uma arte popular tradicional, cultuando a "aura" de um passado arcaico a que estariam associados o "espontaneísmo" e a "pureza" da criação coletiva e anônima de cultura. É por razões desse teor que os folcloristas brasileiros adotaram o mote cunhado pelo confrade francês Saintyves: "O folclore é uma disciplina de amor".
Esse universo doutrinário acabou orientando os folcloristas para uma política ferozmente preservacionista, podendo-se assinalar entre seus projetos um inquérito nacional sobre os folguedos, o levantamento de um "mapa folclórico", a criação de museus de artesanato, a realização de festivais, a estimulação do espírito associativo dos grupos de brincantes responsáveis pelos folguedos. Naquelas situações em que a atitude protecionista não remediava o comprometimento do espírito comunitário e associativo de que dependiam os folguedos, os folcloristas formularam propostas restauradoras.
Quem eram esses folcloristas? Por quais características se distinguiam dos cientistas sociais seus contemporâneos? Vilhena esboça uma resposta a essas indagações mediante uma análise do "ethos" interiorizado pelos participantes do movimento, cruzando elementos reiterados em suas falas aos sentidos detectados em suas práticas, apresentando-nos uma imagem dos folcloristas a partir daqueles traços em que eles mesmos se reconheciam. O elemento central de coesão derivava de um sentimento de missão, permeando o engajamento nesse campo de estudos e militância. A adesão ao movimento parecia repercutir as qualidades que seus integrantes atribuiam ao povo brasileiro. O clima de camaradagem, de hospitalidade, por ocasião de seus encontros, se nutria de sentimentos idênticos àqueles partilhados pelos "homens simples". Assim como a confraternização se apoiava numa liga de solidariedades semelhantes às dos folguedos, o modelo vivo do movimento folclórico consistia nas práticas caipiras de auxílio-mútuo dos lavradores e indígenas brasileiros. Os folcloristas viam a si mesmos numa chave idêntica à sua concepção da "cultura tradicional": lugar de encontro de raças, classes e culturas diferentes.
A parcela majoritária dos secretários das comissões estaduais de folclore eram advogados ou médicos de profissão, com incursões pela imprensa, docência e política, quase todos polígrafos com uma produção intelectual intermitente, dedicando-se à pesquisa folclórica de maneira bastante irregular. Na maioria dos estados, o serviço público era o principal mercado de trabalho para um contingente expressivo de folcloristas. As ligações estreitas de muitos deles com os institutos históricos e as academias de letras estaduais completavam as referências institucionais desses "intelectuais de província", a meio caminho entre o exercício de seus pendores literários e as exigências de rigor científico cobradas em seu trabalho etnográfico. Prensados entre modelos concorrentes e contrastantes do trabalho intelectual, num período de declínio do prestígio de que desfrutava o letrado em sintonia com as elites, não é de se estranhar que esses intelectuais amadores tenham buscado construir uma imagem da nação dando destaque à presença do regional.
Luís Rodolfo Vilhena, uma das melhores promessas da geração emergente de cientistas sociais, morreu num acidente de ônibus no ano passado. Redigi esta resenha no intuito de manter vivo o diálogo que mantínhamos nos encontros anuais dos cientistas sociais em Caxambu, registrando a tristeza de sua falta e a homenagem à sua presença como intelectual talentoso e inovador.
 
 
(*) - Sergio Miceli é professor de sociologia na USP e autor de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira (1920-40) " (Ed. Companhia das Letras).

Folha de São Paulo".
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Orelha de

Projeto e Missão

[POR GILBERTO VELHO]

 

 

"Luis Rodolfo da Paixão Vilhena, trágica e prematuramente falecido em maio de

1997, era um dos mais brilhantes representantes da nova geração de antropólogos

brasileiros.

Ex-aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu

Nacional da UFRJ era, quando morreu, professor de antropologia da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), onde,

além de lecionar e desenvolver pesquisas, ocupava cargos de direção e coordenação.

Antes trabalhara no Instituto Nacional do Folclore, quando integrou projetos

interdisciplinares de alta relevância que repercutiram em etapas posteriores de sua

trajetória intelectual.

Sua dissertação de mestrado foi uma fascinante investigação sobre O Mundo da

Astrologia (Jorge Zahar, 1990), trabalho que já lhe rendeu significativo reconhecimento

acadêmico.

Este livro, cuja origem foi sua tese de doutoramento e que recebeu o 1º lugar no

Concurso Sílvio Romero de 1995, é uma preciosa análise da área de estudos de folclore

no Brasil, onde, com grande acuidade, analisa a organização, atuação e produção dos

folcloristas, tendo como foco principal a Campanha De Defesa do Folclore Brasileiro.

Efetivamente, trata-se de um trabalho sobre um período fundamental da formação das

Ciências Sociais no nosso país, identificando paradigmas, tendências, tensões, alianças,

fronteiras e eventuais conflitos. Alia notável erudição com perspicácia e agilidade

intelectuais, produzindo uma obra de importância definitiva, cuja qualidade só agrava o

sentimento de perda pela morte prematura do autor.

Gilberto Velho".