Teatro Amazonas
Por Rogel Samuel Em: 25/07/2009, às 14H47
Teatro Amazonas
Romance de Rogel Samuel, revisto e reescrito.
2. NATAL DE 1900
Noite escura.
Francisco Ferreira de Lima Silva naquela escura noite vinha subindo a escadaria do imponente palacete onde morava Waldemar Scholz e que muitos anos depois foi transformado no “Palácio Rio Negro”, sede do Estado do Amazonas, no governo de Alcântara Bacellar.
Lima Silva envergava terno de linho bege, chapéu de palhinha, gravata borboleta de seda azul-claro, sapatos de verniz, pretos. Elegante.
Vinha pensando, distraído, imaginando no que o velho Waldemar Scholz lhe tinha reservado, pois o riquíssimo Scholz era generoso, e na noite de Natal dava presentes caros. Trazia para o dono da casa um livro de contos, “Diferentes”, de 1895, de Quintino Cunha, que ainda morava em Manaus e depois publicaria, em Paris, o seu famoso livro de versos “Pelo Solimões”, em 1907, pela Livraria J. Aillaud. Quintino Cunha em Paris era amigo de Aillaud e de Faguet, da Academia Francesa
Para o Natal só, Scholz convidara para a ceia um grupo seleto: Lima Silva, novamente separado da mulher; o maestro Adelelmo do Nascimento, mulato, cultíssimo, violinista, voltava de Paris; Antonio Bittencourt, pai do professor Agnello Bittencourt, que tinha chegado do Ayapuá, no Purus, onde tinha uma mansão, e poucos outros.
Lima Silva era jornalista e fez carreira política em Manaus. Escreveu “Efemérides do Amazonas”, em 1884, gigantesca obra que permanece inédita e talvez se tenha perdido. Escreveu também um livro sobre os movimentos revolucionários. Foi deputado estadual, federal e participou do movimento de deposição de Gregório Thaumaturgo de Azevedo, Governador do Amazonas, quando Lima Silva saiu ferido. Homem de oposição, de luta, da esquerda da época. Thaumaturgo foi deposto, Guilherme Moreira assumiu, pois era o vice, e em poucos dias entregou o governo para Eduardo Ribeiro, o segundo vice.
A paixão dominava Lima Silva. Apesar de casado, pai de duas filhas, o amor por Marinalva o enlouquecia, cabocla pequena, leviana, sensual. Silva não sabia o que fazer. Marinalva o traía “até com os trapixeiros!”, pensava Silva, com ódio.
Ao chegar à porta do palacete Scholz parou e esperou que lhe abrissem. Um empregado, caboclo forte, meio índio, veio abrir:
- Pode entrar, disse o homem.
Na noite anterior, Silva estivera com Marinalva. Junto dela perdoava tudo. Era capaz de beijar seus pés, que aliás eram bonitos. Marinalva tinha os cabelos negros, lisos, brilhantes, a pele bronzeada, os seios pequenos. Olhos de índia, de onça, a cor variava pelo amarelo-ouro-esverdeado, cor indefinível, falsa, perigosa. Marinalva, ela dizia que se chamava assim. Mas como tudo nela era possível, ele não sabia se era verdade. Ela dizia que tinha vindo do Amatari. Não tinha documento. Quando Silva mandava fazer os documentos dela, Marinalva os perdia. Silva a cobria de presentes, roupas e jóias, dizia que queria casar-se com ela, abandonar a esposa, e de fato seria capaz de tudo para ficar com ela. Ela se ria, jurava que sim, e no dia seguinte sumia na orgia da noite, voltava bêbada e louca na manhã seguinte para aquela casa que Silva tinha alugado para ela, na Cachoeirinha. Silva se desesperava, se odiava, jurava que ia abandoná-la, deixava de vê-la, mas quando Marinalva estava sem dinheiro aparecia no Foro, ou na Câmara, ou mesmo na porta da casa dele. Ameaçava fazer escândalo. Silva segurava o seu braço e a tirava dali, e tudo acabava na cama, ela gemendo, ele extasiado de prazer e de genuíno amor. Não, não tinha cura. Por duas vezes separou-se da esposa, D. Cacilda, mulher de boa família, rica, que tinha voltado para a casa dos pais por causa da Marinalva.
Lima Silva no hall de entrada deixou o chapéu. Viu ali a famosa escadaria de madeira encaixada, famosa em todo o mundo, sem coluna para sustento. Foi para a sala contígua, onde Scholz costumava receber os visitantes e onde, anos depois, se faziam as reuniões de governo. A decoração era impressionante. Os quadros, os móveis, tudo revelava luxo e bom gosto. Da janela viu a vivenda de pássaros amazônicos, de que Scholz tanto gostava. Pássaros raros, junto com as orquídeas. Um dia, como ele se aproximou demais, uma garça do viveiro perfurou-lhe o olho esquerdo e o cegou.
Era uma escura noite de Natal de 1900, pouco depois da morte do Governador Eduardo Ribeiro, em circunstância misteriosa. Eduardo Ribeiro foi o construtor do Teatro Amazonas. Foi o construtor de Manaus.
Scholz apareceu de roupa leve e branca, pince-nez de ouro. Sentou-se solene em sua frente e disparou, à queima roupa:
- Lima Silva, quem matou Eduardo Ribeiro?
Quando saiu do palacete Scholz já de madrugada, Lima Silva foi para casa de Marinalva. Ela não estava. Ordenou ao táxi que o levasse à praça de São Sebastião. Em frente ao Teatro Amazonas parou e saltou. A igreja já estava fechada, a praça vazia. Ele sentou-se na escadaria do Teatro. De longe, de bem longe, dos limites da fímbria do horizonte, apareceu um vento úmido e morno, vindo da Floresta, que passou como um fantasma, uivando nas alamedas do Teatro. Caía uma chuva fina.
Lima Silva foi caminhando, abandonado e só, em direção à passagem do aterro onde depois se pavimentou a avenida Eduardo Ribeiro.
Era a morte de Eduardo Ribeiro. A morte de tudo. Poucos anos depois, a economia do Amazonas entrou em decadência e ruína. Manaus foi transformada numa cidade fantasma. O manto negro de uma recessão a cobriu durante cinqüenta anos, povoando suas ruas uma legião de mendigos. O Teatro Amazonas fechou as portas por meio século. Transformou-se em depósito de borracha crua. Os espelhos de cristal, os quadros, as estátuas, as cortinas de veludo, os lustres, os tapetes de linho, os jarros de porcelana, os móveis de luxo, as mesas e cadeiras móveis foram roubados. A Floresta Amazônica ameaçava, na noite escura.