[Bráulio Tavares]
Julio Cortázar foi um constante experimentador de formas narrativas, na estrutura aleatória e ziguezagueante de O Jogo da Amarelinha, na mescla de narrativa literária e notícias de jornal de Livro de Manuel, nos “almanaques” de estrutura verbo-visual como A Volta ao Dia em 80 Mundos. Mas no interior de seus contos ele sempre estava testando novas maneiras de contar a história. Uma de suas experimentações mais constantes é com o ponto de vista narrativo. Um conto narra uma história que acontece, mas, quem está contando a história?
“Tango de volta” é um dos contos de Queremos tanto a Glenda (1980, publicado no Brasil como Orientação dos gatos). É um conto narrado na 1ª. pessoa, e o narrador, como é de hábito em Cortázar, principia com um longo parágrafo aparentemente caótico em que salta de um ponto para outro entre informações desencontradas, referindo-se a pessoas como se imaginasse que já as conhecemos, comparando fragmentos de informações como se já as tivesse fornecido antes. A esse longo parágrafo segue-se outro que começa, paradoxalmente: “Como sou muito convencional, prefiro pegar desde o começo...”. Segue-se uma história em que uma argentina, Matilde, abandonou o marido no México e voltou a Buenos Aires, de onde forjou um atestado de óbito para dizer que era viúva, casou com um homem rico, teve um filho, e agora vê o primeiro marido rondando sua casa, namorando sua empregada Flora, tentando se infiltrar lá dentro.
O leitor prevê mais uma das bem urdidas histórias de crime de Cortázar. (É engraçado, nunca vi nenhuma delas nas antologias de contos policiais. Rotularam o rapaz de “autor fantástico” e pronto, morreu aí.) Tudo é narrado numa “falsa 3ª. pessoa” do ponto de vista de Matilde, a esposa, e depois de duas páginas já esquecemos que tudo começara com um “eu”. O conto vai até um desfecho violento, e no último parágrafo sabemos quem é o narrador: é o médico ou enfermeiro que chegou à casa logo após o crime, e a história é extraída da empregada, Flora, levando-o a reconstituir tudo que se passou. Acontece que tirando o primeiro e o último parágrafo tudo se passa dentro da mente de Matilde. Pegando os fragmentos de fatos fornecidos por Flora, o narrador romanceia por conta própria o que teria se passado na mente da mulher, seus medos, suas culpas, sua paranóia. É um narrador não-confiável, porque, embora os fatos provavelmente sejam aqueles, o texto está cheio de conjeturas e adivinhações do que Matilde teria sentido e pensado, e que ele não poderia conhecer. É mais uma das muitas experiências de Cortázar sobre um”eu” narrador que nunca é o “eu” narrador da literatura convencional.