“Suassuna”, por VALTER HUGO MÃE

[Válter Hugo Mãe]

Pedi muito para que me levassem a cumprimentar Ariano Suassuna. Foi uma chatice grande que eu fizesse tal pedido. Ele está com 86 anos, teve um problema grave de saúde e não é bom que se canse. Insisti, mimado mas sem me impor. Pedi. Foi isso. Queria muito cumprimentar o grande mestre e algumas pessoas diziam entusiasticamente que sim. Diziam que ele era um homem de boa fé profundamente amigo, haveria de me receber encantado. Foram essas pessoas que me deram a esperança.

Depois, Ana Arraes falou com Ariano e anunciou a autorização. Vieram dizer-mo como se me trouxessem morangos frescos e nos pudéssemos maravilhar.

Fiz o percurso até à casa de praia da família Suassuna com cabeça de menino. Cantando. Alegre, sem vergonha e sem contenção. Queria cantar, mesmo rouco e quase sem voz, precisava de me mexer por nervos e ansiedade. Entretanto, magicava modos de arranjar uma desculpa para o meu pedido e cumprir a promessa de demorar cinco minutos, nunca mais do que isso. Entraria, estenderia um exemplar de O Auto da Compadecida para ele assinar, ele ia devolver-mo com um sorriso e pé na estrada. Eu ia pedir desculpa. Era necessário tratar da culpa, para não me sentir um estorvo insuportável na vida de um homem tão adorado e celebrado.

Quando chegámos, ao fim da manhã, já as temperaturas de Pernambuco acima dos 30 graus, o Ariano Suassuna estava no banho, preparando-se para nos ver, refrescando-se. Chegou à sala, onde o aguardávamos, com uma vontade genuína de nos ter ali. Foi o que me desmontou completamente. Imediatamente percebi que a regra dos cinco minutos era uma encomenda exterior ao seu coração. Ele tinha vontade de conversar. Disse que havíamos de demorar o tempo que quiséssemos.

Falou um pouco de Portugal, da paixão por Portugal, e falámos de Saramago, de como lhe elogiou e reparou o discurso do Nobel. Depois, contou-me acerca do romance em cinco volumes que escreve desde 1980. O seu filho, Dantas, artista plástico, havia-me adiantado um pouco a existência dessa obra. Foi quando Ariano pediu que lhe trouxessem os volumes metidos em pastas vermelhas e nos leu as páginas de abertura feitas daquele luxo literário de que o seu talento é capaz.

Pouca coisa deve elogiar mais um escritor visitante quanto escutar em viva voz trechos inéditos da obra do escritor visitado. Não se deve poder honrar e prestigiar mais uma visita do que fazendo isso, admitindo que aceda à obra no seu tempo de pura intimidade.

É de uma candura magnífica e coloca-nos num patamar de dignidade superior. Como amigos. Quem assim recebe, recebe como amigo.

O que se passa é que a escrita de Ariano Suassuna é discurso fundamental de um certo Brasil. Ela é uma forma dita do que o Brasil é. Cada coisa ali se contém e se explica. Do material e do imaterial, tudo se apresenta limpo e descomplicado para o espírito observador e instigador de Suassuna. O Brasil é um mistério que ele soube sempre revelar.

Quando eu disse que ia ver Ariano ou que havia visto Ariano, as pessoas todas acusavam um ar de graça. Compreendi bem o que pensavam. Pensavam que ele é uma espécie de entidade espiritual daquele lugar, um ser levantado acima das demais almas, feito para abençoar os outros com visões privilegiadas dos segredos de existir. Isso é o que fazem os seus livros mas também a sua generosidade. As pessoas sentem-se honradas por se identificarem com ele, sentem-se honradas por serem representadas por ele. A grande literatura é isso, uma mescla de gente que faz com que a gente mesclada se pertença, se queira pertencer.

Na dedicatória que me fez agradeceu a visita. Estivemos ali uma hora, eu já preocupado com as promessas que fizera, ele adorando conversar e ler, e confessando que o primeiro dos cinco volumes inéditos deve sair em Março. Eu a incentivá-lo. A achar que precisava de o incentivar a rever e terminar aquela magna obra que, sem dúvida pelo que o ouvi ler, virá como luz intensa às letras brasileiras. E ele muito calmo. Todo cheio de paciência. Urgente apenas em estar num certo sossego.

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Foi quando me contou.

O Ariano Suassuna mandou recado à morte. Pediu aos médicos que cuidaram dele para que informassem a caetana de que ele não

pretendia morrer. Contou a história e repetiu, olhando bem para mim: eu não pretendo morrer. Sorriu.

O Ariano Suassuna tem compromisso ainda longo com a literatura e não pretende faltar. Nunca faltaria a um livro.

Falou-me acerca da tapeçaria que estava na parede, criada a partir de uma obra plástica da sua autoria. A morte, ou a caetana,

como por ali também se diz, é assunto velho na sua cabeça. Eu creio que ele ombreou com ela pela inteligência e ela vai ter de entender. A literatura está sempre à míngua de uma palavra nova de Ariano. A natureza tem mesmo de conspirar a favor dele. Que ele

perdure e escreva é uma inteligência que a própria natureza revela por si mesma.

Entrei no carro mudo. Chocado. Alguns homens fazem de todas as horas uma lição de vida. Quando eu for grande quero ser um senhor generoso que alivia a culpa dos outros e transformam os sonhos de toda a gente em bocados simples da vida. A simplicidade é a maneira mais bonita de se construir, porque ela é despojada sendo firme, convicta. Ao visitar Ariano Suassuna, sei bem, visitei humildemente a alma de um certo Brasil. Que falou comigo. Falou comigo, simplesmente.

(*) reprodução do artigo publicado na coluna “Autobiografia Imaginária”do  jornaldeletras.sapo.pt,  27 de novembro a 10 de dezembro de 2013

 

 

 

Escritor.  Licenciado em Direito, pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Vive em Vila do Conde. Publicou cinco romances:  O filho de mil homens (2011),  a máquina de fazer espanhóis (2010)  o apocalipse dos trabalhadores (2008),  o remorso de baltazar serapião, vencedor do Prémio José Saramago (2006) e  o nosso reino (2004). A sua obra poética está revista e reunida no volume  contabilidade. É autor dos livros para os mais novos:  O rosto (Agosto 2010),  As mais belas coisas do mundo (Agosto 2010),  A verdadeira história dos pássaros (2009) e  A história do homem calado (2009). Escreve a crónica  Autobiografia imaginária no Jornal de Letras. Valter Hugo Mãe é vocalista do grupo musical Governo e esporadicamente dedica-se às artes plásticas. Letrista dos músicos/projetos Mundo Cão, Paulo Praça, Indignu, Salto, Frei Fado Del’Rei, Blandino e Eliana Castro. Recebeu, em 2009, o troféu Figura do Futuro, atribuído pelo Correio da Manhã. Recebeu, em 2010, a Pena de Camilo Castelo Branco. Em 2010 recebeu a Medalha de Mérito Singular de Vila do Conde. Em 2012 foi distinguido com o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.