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 verdades que mentem mais do que qualquer mentira.

José Eduardo Agualusa.

Quando você pensa na África, o que lhe vem à cabeça? Girafas e rinocerontes?

Grandes extensões de savanas habitadas por elefantes enormes, leões famintos e tribos primitivas, de preferência canibais?

Nada disso? Não sabe?

Quer pensar um pouco mais sobre o assunto?

Tudo bem, não precisa ficar constrangido(a), tenha a certeza de que você não está sozinho(a). Os estereótipos são assim mesmo, eles servem para definir e limitar pessoas e situações dificultando e, muitas vezes, impedindo que se enxergue o mundo com mais clareza e menos preconceito.

Confesso também ter sido vítima do estereótipo quando o assunto é a África. Nunca imaginei, por exemplo, que esse continente – para mim, um lugar misterioso e longínquo – já houvesse proporcionado ao mundo quatro prêmios Nobel de literatura. Fiquei não só pasma, mas também envergonhada, pois, como muitas outras pessoas, sempre vi a África como uma terra dominada pela miséria, a doença, a guerra e a ignorância. Horrível, eu sei!

Para me redimir, decidi buscar alguma leitura que derrubasse sem piedade todas essas ideias preconceituosas. Assim, li “Noites das Mil e uma Noites” do escritor egípcio Naguib Mahfouz, alguns contos da sul africana Nadime Gordimer (entre eles “Beethoven era 1/6 negro”), “Desonra” do também sul africano J. M. Coetzee, “Terra Sonâmbula” do moçambicano Mia Couto e como minha última “leitura africana”, “As Mulheres de Meu Pai”, do angolano José Eduardo Agualusa.

Cada uma dessas obras, e seus respectivos autores, mereceriam uma longa e detalhada dissertação (tenho certeza que devem existir muitas) apontando suas qualidades, não só literárias, mas também linguísticas[1]. No entanto, como não sou uma teórica ou crítica literária, reservo-me o direito, como uma simples leitora, de escolher para comentar apenas uma das obras já citadas. E a minha escolha recaiu dessa vez, por motivos puramente subjetivos, sobre “As Mulheres de Meu Pai”.

Esse foi um daqueles livros que me senti compelida a ler mais de uma vez, não porque a escrita fosse do tipo difícil, no sentindo de obscura ou enigmática. Ao contrário! Agualusa (desculpem o clichê) escreve direto para o coração do leitor. Seu texto é como se fosse um longo poema transformado em narrativa.

Então, onde residiu minha dificuldade, você deve estar se perguntando? A resposta é simples: nas vozes. Há muitas delas e todas pareciam, na primeira leitura, estar “falando” ao mesmo tempo. Precisei filtrar, não com o intuito de excluir, mas de separá-las para depois “ouvi-las” com toda atenção de que era capaz. E esse, sem nenhuma dúvida, foi o meu maior problema, “ouvir”.

Parece estranho estar usando o verbo “ouvir” no lugar de “ler”, mas uma das qualidades do texto é a sua sonoridade. As palavras, as frases e os parágrafos pedem para serem lidos em voz alta. O autor usa e abusa de expressões características das várias terras – Portugal, Angola, Moçambique, África do Sul – pelas quais seus personagens passaram. No entanto, essa preservação da linguagem local não compromete a leitura ou o texto, na verdade o fator referencial fez tudo ainda mais real e mágico.

Aqui temos outro aspecto interessante do livro. Agualusa mistura realidade e fantasia de tal maneira que se torna difícil determinar quando uma termina e a outra começa. Imagens absurdamente surreais – como uma galinha que se comporta como um cachorro ou hienas sendo conduzidas, pelo cabresto, por anões – compartilham o mesmo espaço com a difícil realidade de um país ainda se recuperando de uma sangrenta guerra civil. A combinação desse imaginário estranho e poético com a realidade nua e crua cria uma trama envolvente e bela.

E é claro temos os personagens. Cada um deles também mereceria uma longa dissertação, não só por serem muitos, mas porque são de uma complexidade desconcertante.

Laurentina, mulata portuguesa/indiana, uma mulher em busca de sua origem, responsável pela narração de boa parte da história. Algumas de suas observações são colocadas na forma de notas de rodapé, estabelecendo-se entre a personagem e o leitor uma espécie de diálogo paralelo, destacando-se como outro texto dentro do texto principal.

Mandume, ou seria melhor dizer Mariano Maciel, o “preto mais branco de Portugal”, profundamente apaixonado por Laurentina, que rejeita suas raízes africanas e qualquer relação com o passado de seus pais em Angola. Em determinado momento seu desconforto é tão grande que fica repetindo, como um mantra, “Eu não sou daqui. Eu não sou daqui. Eu não sou daqui”.

Bartolomeu, o escritor, com ares de Dom Juan. Ao contrário de Mandume, vê-se, parafraseando Agualusa, como o branco mais negro de Angola, um defensor da mestiçagem, pois como ele mesmo diz a mistura de raças tem uma “natureza revolucionária”.

E além desses três, os personagens principais do enredo, temos ainda todos os outros: os imaginários (Pouca Sorte, Merengue, Alfonsina, Fatita de Matos, Ana Lacerda, Dorothéia, Dário Reis, Anacleta e muitos outros) e os reais (Mia Couto, Sérgio Guerra, Karen Boswall e, muito provavelmente mais alguns que a minha ignorância não me permitiu reconhecer). Todos tendo voz e espaço ajudando a tecer uma trama paradoxalmente simples e complexa.

Contudo, quem já teve a oportunidade de ler o livro deve estar se perguntado onde está aquele que eu chamaria, sem a menor dúvida, de o “grande personagem” dessa história: o músico, mulherengo e  morto Faustino Manso. Sim, Agualusa utiliza o mesmo recurso de Machado de Assis e revela já nas primeiras páginas que o personagem título de seu livro está morto. Porém, ao contrário do que ocorre em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, não é o defunto o narrador, mas aqueles que sobreviveram, entre eles suas sete saudosas viúvas.

Faustino Manso – que de manso não tinha nada – era um homem que sabia amar as mulheres e por saber amá-las era amado (muito!) por elas. Um negro ou mulato – dependendo do ponto de vista – que no início da história já está morto e sendo velado em Luanda por sua primeira e única esposa, Dona Anacleta (sim, não me equivoquei: uma esposa, mas sete viúvas!). Escrever sobre Faustino levaria muito tempo, pois se trata de um personagem fascinante, é preciso mergulhar na sua história para compreendê-lo, quem sabe, um pouco. No entanto, como uma pequena amostra, valho-me do mesmo recurso usado por Laurentina, antes da viagem realmente começar, e vou até o necrológico de Faustino escolhendo um de seus anúncios: “Pecado é não amar. Pecado maior é não amar até o fim do amor. Não me arrependo de nada, Tino, meu seripipi. Repousa em paz”. Faustino também não se arrependeu de nada, apesar de, no fim, a vida ter lhe reservado uma grande surpresa.

Enfim, Agualusa, em “As Mulheres de Meu Pai”, faz poesia usando a narrativa. Aproveita para falar de sua terra sem, no entanto, esconder a verdade sobre ela. A pobreza esperada de um país africano está lá, principalmente, nos centros urbanos, onde se concentra a maior parte da história. Porém, percebe-se no autor um otimismo mal disfarçado. É como se ele nos dissesse: “Tudo bem, temos problemas; mas vejam ainda somos capazes de dançar, cantar e rir das nossas dificuldades. Já superamos muita coisa, nos deem tempo e chegaremos mais longe”.

Como ele menciona o Brasil em vários momentos – até mesmo Lula tem seu espaço – isso me faz acreditar que, de alguma maneira, ele nos considera um modelo a ser seguido. Se seu sonho se tornará realidade, ninguém pode dizer. Agualusa, no entanto, parece acreditar que os sonhos devem ser levados a sério; afinal, como ele mesmo diz na sua frase de encerramento, “Leve os sonhos a sério. Nada é tão verdadeiro que não mereça ser inventado”.



[1] Eu mesma escrevi uma crônica sobre o livro “Desonra” de Coetzee, publicada com o título “Os Vários Significados de uma Palavra”.