Rogel Samuel

«Somos membros uns dos outros», dizia São Paulo aos cristãos de Efeso. 
Isto é citado por Laín Entralgo, em texto que incluímos recentemente no nosso site.
Entralgo, pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, 
sempre exerceu sobre mim extraordinário fascínio.
Define ele a capacidade do homem de considerar-se pessoa por 
dois conceitos: o próprio e o alheio. 
Na esfera do próprio, estabelece Laín duas diferentes esferas: a do 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e a do 'em mim' (que posteriormente ele estuda na patologia). 
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com a outra? como considerar o outro como outro eu? como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade? 
Para ele, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''. 
A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe. 
Seu principal livro, de Entralgo, raríssimo entre nós, se 
chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na 
Biblioteca Nacional. 
Nesse, ele percorre com maestria toda a filosofia ocidental desde os pré-socráticos, e vai em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro. 
Assim era em Hegel, quando o sujeito suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro. 
Lain também era médico. Escreveu tratados de medicina. 
Faleceu no ano passado, com mais de 90 anos.
Essas considerações vêm antes de ler o CANTO 1, 26 de Jorge 
de Lima, em INVENÇÃO DE ORFEU:

Qualquer que seja a chuva desses campos 
Devemos esperar pelos estios; 
E ao chegar os serões e os fiéis enganos 
Amar os sonhos que restarem frios. 

Porém senão surgir o que sonhamos 
E os ninhos imortais forem vazios, 
Há de haver pelo menos por ali 
Os pássaros que nós idealizamos. 

Feliz de quem com cânticos se esconde 
E julga tê-los em seus próprios bicos, 
E ao bico alheio em cânticos responde. 

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, 
Possa mirar-se as asas depenadas 
E contentar-se com as secretas penas. 

Alguns poetas tiveram, ou revelam, alguma dificuldade de 
relacionar-se com o outro ('os ninhos imortais forem vazios'). 
'Imortal' - traduz o 'felizes para sempre'.
A felicidade presente ('a chuva desses campos') atinge a solidão do futuro ('Devemos esperar pelos estios'). 
Sua poesia reside nisso. 
Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma solidão sempre ali, sempre fiel, uma vocação de 'amar o perdido', o passado: 'Amar os sonhos que restarem frios'. 
Os ninhos estarão vazios, e neles só os pássaros os idealizados.
A estrofe:

Feliz de quem com cânticos se esconde 
E julga tê-los em seus próprios bicos, 
E ao bico alheio em cânticos responde. 

Marca o centro do reconhecimento de si no outro inexistente, no outro distante, impossível.
Diz esses versos: Eu me escondo nos versos que canto, canto 
com o fingimento do canto.

É o contentar-se descontente de si consigo mesmo, e em si.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, Possa mirar-se as asas depenadas E contentar-se com as secretas penas. 

As asas depenadas não voam. O coração não ama. As cenas ao 
redor, terríveis. As dores não se expressam e são secretas. Os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de Invenção de Orfeu mantém a sua imortalidade e beleza.