Somos eternos

 

                                               Cunha e Silva Filho

 

 

Ontem, foi mais um Dia de Finados. Na  TV são exibidas as costumeiras  reportagens anuais referentes ao feriado.  Sempre associo  esse dia  santo àquelas  antiquíssimas  e quase  apagadas  fitas  que  passavam  em Teresina  nos anos  cinquenta  contando o nascimento , a vida,  morte e ressurreição de Cristo.

Crianças,  adolescentes e adultos, todo mundo  não perdia   aquela fita, sempre    por muito  tempo  repetida. Até que,  em outra fase  da vida  teresinense,  com a vinda do Cinemascope, na grande tela surgiram  os  filmes  coloridos  que, se não tratavam   como  tema   central  a figura de Cristo,    como o Manto  Sagrado, de 1953,   com Richard  Burton e  Jeans Simmons   sendo  os atores  principais,   eram   filmes  que diziam  respeito à existência  de Cristo e mesmo  serviam de argumento para recordá-lo aproveitando  algum  motivo, no caso   específico,  o filme  tinha  como símbolo-objeto  mais   significativo  o manto  de Jesus que  era o  seu tema   capital, a par de   apresentar uma bela  história de amor  e conversão  ao cristianismo  vivida por Richard Burton (Marcellus Gallo), tribuno romano    responsável pela missão de, em Jerusalém,  levar  Cristo à crucificação por ordem  do  imperador Tibério  e a bela   Simmons ( Diana), uma jovem da aristocracia  romana. 

O manto fora disputado  numa partida de jogo entre Marcellus e os soldados. Marcellus  ganha a disputa. Ao tocar,  porém, no manto, objeto sagrado,  sofre uma mudança  interna  para ele  inexplicável  que o fará ser visto pelos  romanos  como  um doente mental.

 

  O manto selará seu destino  como  pessoa humana,  mudará   seu   pensamento  religioso e, finalmente,  o levará à conversão  espiritual,  abraçando  o cristianismo após  sofrer  pressões do imperador Calígula.

 Outros  dois personagens com os quais  Marcellus cruzará no filme é seu  escravo Demétrio, comprado em leilão e disputado com Calígula, o sucessor do imperador   Tibério. Demétrio é    interpretado  por  Victor Mature. Essa disputa pelo forte  escravo Demétrio valeu a Marcellus  a inimizade de Calígula.

 Demétrio,  que havia  se convertido a  Cristo,  se torna hostil a Marcellus, afirmando-lhe que não mais o obedecerá nem será mais seu escravo. Demétrio  fica  com o manto e some.

Marcellus, chamado à corte  imperial em Roma, novamente  recebe a missão de  destruir o manto de Jesus, tido por um adivinho  palaciano como um objeto  enfeitiçado. É  nesse retorno a Jerusalém que  reencontra o antigo  escravo Demétrio, tornando-se-lhe amigo. Demétrio o leva a conhecer  Pedro,  apóstolo de  Cristo. Marcellus, logo reconhece  o valor moral, a bondade e  fé do apóstolo Pedro,  interpretado   por Michael Rennie.  

Convidado  a  assistir a uma pregação  em local  desconhecido  dos soldados  romanos, Marcellus  percebe o quão diferente  é ser cristão. Passa a ter uma nova  concepção  dos ensinamentos  e dos  propósitos  de Cristo crucificado. A cena em que Demétrio lhe diz  que não deve temer  tocar  o manto traduz uma beleza  indescritível. Marcellus  toca no  manto e o envolve em seu  peito. Sente  uma  sensação  de  paz e  tranquilidade. São os  primeiros sinais  de sua  conversão.

Essa  mudança  de visão de vida e dos valores   da  existência Marcellus   passará  à sua amada Diana,  que também  se converterá.  A trama do filme é assim  o ato da conversão definitiva  acompanhado de todos os sacrifícios e sofrimentos  que  esse gesto  extremo  de mudança  espiritual  desencadeia  no  jovem casal  romano.

É um belo filme cuja história  mostra ao  espectador,  no seu final,  uma das mais  comovidas e dramáticas cenas a que já assisti na tela, na qual  Marcellus  e sua amada,  abdicando de todo  o peso  da  paganismo, dos deuses    de pedra,  e dos antigos   valores  da cultura   romana  dos césares,  de uma vida  palaciana  de conforto propiciado  pela  alta condição   social do casal,  saem  do  ambiente em que  foram   criados e desfilam,  por entre   os  potentados,   em direção  ao sacrifício das suas vidas. Seu destino é a vida eterna, junto  aos cristãos, subindo aos céus. A imagem final  do casal apaixonado e convertido muito  me  lembra aquele outro   final  maravilhoso  pela sua  densidade  dramática  e por toda uma  simbologia   do filme Quo Vadis? baseado  no romance do escritor  polaco Henrik Sienkiewcz (1846-1916) com Robert Taylor e  a  beleza delicada de  Débora Kerr,  interpretando dois  personagens, ela, Lygia,  cristã, ele,    o general romano Marcus Vinicius,  que se apaixonam. Ele se converte e ambos, seguirão  as lições  de Cristo. A cena se passa  na Roma  sob o império do sanguinário Nero. Naquela cena final,  o casal  apaixonado, sendo  o foco   da câmera,  vai   caminhando  até  certamente  encontrar   as  alturas celestiais, no  decisivo  caminho da morte e da salvação.

Os dois exemplos  de filmes se misturam  à reportagem na TV   sobre  finados e, de alguma forma,   despertam  as lembranças  de nossos  entes queridos, de nossos amigos e conhecidos  que,  durante um tempo,   conviveram  conosco.  Imagens de rostos  queridos,  de vozes quase apagadas,  de gestos,  de ações se entrelaçam diante de nossos  olhos conscientes, cada dia que  passa,  da efêmera  temporalidade  na Terra.

Bonita e comovente  foi aquela  declaração de um  anônimo que,  diante da câmera da TV,  comentando  sobre o Dia   de Finados,    afirmou  com  muito  elevada  espontaneidade e sentido  perfeito  da data  e do lugar   que  estava visitando   -  “Este lugar  merece só  respeito, muito respeito.”

Não há como  desviar  nossa atenção  e   impregnar   o pensamento das  “asas de dor” dos que perdemos  no sorvedouro da vida. Lá estão  eles – essa gente querida  que se foi contra  nossa vontade. As imagens estão  lá longe, na capital  teresinense, em Amarante,  em Salvador, no Rio de Janeiro e quem sabe, em outros lugares   que não  chegaram ao nosso conhecimento. São  parentes, amigos,  conhecidos. São  pessoas  ilustres, comuns,  são  nossos ídolos. O lamento    do Dia de  Finados  se estende a  um conjunto  de seres que já se  foram em  épocas diversas, em lugares  diferentes, em nossa  pátria ou na   pátria alheia. Ele assume  o tamanho da humanidade,  que amamos de formas  variadas.   Todos esses seres  estão “dormindo  profundamente”  como no  poema  de Bandeira tantas  vezes  citado em razão do tema do  ubi sunt?”

Eis o Dia de Finados, motivo  de veneração,  de respeito,  de saudade e de  lembranças que aprendemos  a assimilar, sem aquela dor  aguda  da perda  recente. Se as perdas  são   terrenas, os ganhos   são  os das grandes  recordações,  dos fios da  memória,  das imagens  sublimes que nos  acompanharão  para sempre  pela vida  afora. Não há  desaparecimento absoluto. Os entes  queridos  que guardamos fortemente   na memória  fazem  parte  viva  de nosso ser e da nossa  temporalidade.  Não há como  perdê-los de vista. Estão presentes,  conosco.