Professora e acadêmica Socorro Rio Magalhães
Professora e acadêmica Socorro Rio Magalhães

[Socorro Rios Magalhães]

Inicialmente quero agradecer ao acadêmico Oton Lustosa, por ter me confiado a honrosa e prazerosa missão de fazer a apresentação do seu mais novo livro Em busca de uma rede na varanda, coletânea de contos. Trata-se do seu segundo livro neste gênero, pois, no ano 2000 já publicou um volume de contos intitulado O pescador de personagens. Com efeito, Oton Lustosa não é um principiante, é autor de romances como Meia-vida, de 1999 e Vozes da ribanceira, de 2003, obras de grandes recursos estilísticos, que colocam seu autor entre os mais inventivos prosadores da ficção brasileira contemporânea.

Este novo livro de Oton Lustosa, Em busca de uma rede na varanda, reúne doze contos, entre os quais o que dá nome à obra, publicados sob a chancela da Bienal Editora, que tem como editor, o presidente da APL, jornalista Zózimo Tavares. Os textos variam na sua extensão e na densidade dos temas abordados, ora apresentam cenas do cotidiano nas grandes cidades, ora mostram vivências da vida rural, revelando sempre facetas ocultas da condição humana, que são desvendadas pelo olhar perscrutador de um narrador implacável.

Chama a atenção no conjunto da obra, o cuidadoso trabalho de construção do ente ficcional, que, por convenção, denominamos narrador. Percebe-se uma inegável preferência pela narração em primeira pessoa, o que ocorre, por exemplo nos contos “O formador de opinião”, “Cinzas”, “Em busca de uma rede na varanda”, “Dezoito zero sete”, “Os lavadores” “Literato de escol” e “Umas verdades”. Narrados em terceira pessoa, apenas quatro contos: “Festa de cão”, “Mãe, o vô desmaiou”, “Sinuca de bico” e “Mensagem”.

Constata-se ainda a presença de um foco narrativo inovador que aparece no conto “Shirley”. Neste, toda ação se desenrola a partir do diálogo entre as personagens, dispensando a figura do narrador.  Por meio do discurso direto de duas personagens, patroa e empregada, representantes de dois mundos inconciliáveis, a ação é encenada, provocando no leitor a sensação de assistir a uma peça teatral. Em “Shirley”, o contista rompe de forma radical com a tradição do narrador onisciente, banindo do seu texto qualquer vestígio de narração e aproximando-se de uma ação dramática, de tal modo que elimina as fronteiras entre a literatura e o teatro. Esse recurso narrativo é classificado por Lígia Chiappini Moraes Leite como modo dramático. Nas palavras da autora:

Agora que já se eliminou o autor e, depois o narrador, eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação ao que as personagens falam ou fazem, como no teatro, com breve notações de cena, amarrando os diálogos. (LEITE, 1985, p. 58).

            No conto de Oton Lustosa toda a ação é sustentada pela fala das personagens, que, com papéis bem demarcados – patroa e empregada – terminam por assinalar o abismo que separa o mundo do rico e o mundo do pobre. Eis uma pequena amostra do modo dramático em que está escrito o conto “Shirley”:

- Não ouviu ... pronto! Ó Dejanira, quer saber sobre esses quadros todos? Vá a meu bar e traga a minha vodca.

- A senhora toma pura... Eu vou pegar o gelo? Oh ... que música linda, doutora Halda! Não gosto quando a Nori liga o som alto e ouve umas músicas horríveis, só barulho, rock, um som esquisito. As músicas de preferências da Shirley são românticas como essas aí que a senhora ouve, suaves, lindas!... Falam de amor!... Eu preferi músicas assim. Doutora Halda!... Me desculpe ... A senhora!...

- Não se preocupe... Curto uma fossa. Ao que interessa, como lhe prometi. Aquele lá no centro da parede, um Botticeli.

- Uma Santa... Meu Deus... Nua!

- O Nascimento de Vênus. Aqui!... Vem cá.

- Mais uma santa!  Parece que está olhando para mim! Valha me Deus!

- A Mona Lisa. (LUSTOSA, 2022, p. 89)

 

O autor de Em busca de uma rede na varanda, não é, como já disse, um neófito na arte da escrita literária, pelo contrário, é escritor maduro e experiente no uso dos artifícios narrativos. Não por acaso escolheu por epígrafe do seu livro, um trecho do conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis. Assim como o bruxo do Cosme Velho, Oton traz para seus contos uma ironia e um sarcasmo que se insinuam nas entrelinhas, desafiando a percepção do leitor a descobrir os sentidos ocultos em frases aparentemente inocentes. É o que transparece sobretudo nos contos “Literato de escol” e “Umas verdades”, em que o autor, assim como Machado investe sua crítica impiedosa contra a hipocrisia da sociedade e as fraquezas da humanidade.

Ainda relacionado à questão do narrador, o que salta aos olhos do leitor nos contos narrados em primeira pessoa é a presença de um narrador idoso, de 70 ou 80 anos, conferindo à narrativa um caráter memorialístico, como ocorre nos contos “O formador de opinião”, “Cinzas”, “Em busca de uma rede na varanda”, “Literato de escol” e “Umas verdades”. É nesses textos que o autor cria narradores-personagens saudosos de um mundo de valores autênticos ameaçado por novos e duvidosos valores, advindos de uma modernidade que se impõe pela destruição de valores do passado. É o que se encontra, por exemplo no conto “Em busca de uma rede na varanda”, cujo narrador-personagem assiste desolado ao desaparecimento da praça de sua infância e juventude, com a velha figueira onde estavam gravados os versos do velho poeta da cidade. Tudo destruído em função dos novos jardins de grama sintética e piso de cimento. Essa imagem de um mundo em ruínas é muito recorrente nesses contos narrados, por um sujeito solitário, que, no final da vida, rememora acontecimentos do passado.

Situação idêntica encontra-se no conto “Umas verdades”, em que um narrador de meia idade, trancado no velho casarão da fazenda da família, assume a tarefa de escrever “umas verdades”, que precisavam ser ditas sobre si mesmo e a sua família. Tal qual um Paulo Honório, narrador-personagem de São Bernardo, de Graciliano Ramos, o personagem de Oton Lustosa tenta reconstituir fatos e experiências vividas, ao longo de sua trajetória, buscando resgatar a sua verdade real e afastando todos os artifícios dos jargões literário ou jurídico, a fim de prevalecer a verdadeira história da sua vida e de sua família. Assim ele justifica o seu intento:

O que me leva a puxar pela memória, empreender pesquisa, entregar-me a esse trabalho penoso de narrar fatos que dizem respeito à minha própria vida e às vidas de alguns parentes meus, bem assim da cidade e de seu povo, não é algo de cunho altruístico, mas de ordem pessoal e familiar. Não pretendo escrever peça literária, nem romance histórico ou livro de memórias. Não quero cometer semelhante erro ao que me sucedeu nas petições ao longo de minha fracassada carreira profissional: a lengalenga do jargão forense, a delicadeza fingida, o medo de tratar com juízes e promotores. Pretendo ficar longe dos códigos e dos vocabulários jurídicos. Seria isto o abandono de uma profissão? Entrego-me a outro ofício, movido por estranha voz interior, como que a ordenar-me quanto ao que devo fazer: “Vai, escreve tua história”. (LUSTOSA, 2022, p. 128).

 

            Já me aproximando do final desta apresentação, quero ainda chamar a atenção para outro recurso narrativo utilizado pelo autor no conto “Umas verdades”, que merece destaque pelo nível de inventividade narrativa. No seu desfecho, o conto traz um segundo narrador que conclui a história iniciada pelo primeiro narrador. Este é Fulgêncio. Com letras em itálico, para indicar a mudança de narrador, tem-se o relato de Fulgêncio, amigo de infância de Nemésio, o protagonista, que narra o fim da história. Surpreendemente, o protagonista recupera-se da angústia e revolta e reconhece que aos humanos não é permitido apropriar-se da verdade e que somente por meio da fé se alcançará a verdade libertadora.

            Resta-me ainda, antes de concluir, um rápido comentário a respeito dos contos narrados em terceira pessoa em que o autor emprega um discurso que os estilistas chamam de discurso indireto livre e que Bakthin denomina de discurso híbrido em que se misturam as vozes do narrador e das personagens, gerando um efeito que o teórico classifica como polifonia, um arranjo de diferentes vozes num mesmo enunciado. É o que se percebe, por exemplo, no seguinte fragmento do conto “Mãe, o vô desmaiou:

“Ora, caminhar! ... Aquele sujeito enxerido fazendo perguntas; fosse contar os seus passos miúdos, seguisse adiante. Um calado por resposta, o sujeito se foi. E agora, novamente, o pescoço virado (ou seria o juízo?). Estavam elas de volta. Oh que simpático! - diriam outra vez. Puxariam conversa: O senhor está sozinho... Quem o acompanha?... Precisa de ajuda?  Estenderia a mão direita, e elas o cumprimentariam, tão meigas, tão carinhosas, as mãos como de seda ... Ou de fadas. (LUSTOSA, 2022, p. 76).

 

E agora realmente concluindo deixo uma mensagem aos leitores: vale a pena buscar uma rede na varanda para embalar-se ao ritmo das histórias tão fascinantes de Oton Lustosa, que nos levam a viajar, sonhar pensar e refletir... O que seria de nós sem a ficção? 

 

Referências

BAKTHIN, M. Questões de literatura e estética: teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1990.

LEITE, Lígia Chiappini de Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.

LUSTOSA, Oton. Em busca de uma rede na varanda. Teresina: Bienal, 2022.