Como fica o verbo haver quando tem o sentido de “conseguir”, “obter”, “alcançar”, “adquirir”? Estão corretas as frases: “Hei de comprar aquele carro. Hei de fazer a prova amanhã. E Soares houve-se como pôde na singular situação em que se achava. Eu hei-me bem diante dos convidados.”? (No sentido de comportar-me). P. K. Rio de Janeiro/RJ 

Para melhor responder à questão, vejamos toda a sintaxe do verbo haver, tanto no seu uso pessoal quanto impessoal. 

I - Como verbo PESSOAL, pode empregar-se em todas as pessoas, fazendo a devida concordância com seu sujeito. Ocorre nos seguintes casos: 

1. como auxiliar de outro verbo, o qual vai dar o sentido à frase, sendo por isso chamado de ‘principal’: Vamos nos mudar deste bairro caso ele haja encontrado casa em outro. O convite havia sido feito para que se discutisse a ética nas relações profissionais. Falou como se eu não houvesse admitido que não conseguimos deixar de ser seres morais!

O verbo haver neste caso comuta com o auxiliar ‘ter’, que é mais popular:

Vamos nos mudar caso ele tenha encontrado casa em outro bairro. O convite tinha sido feito... Falou como se eu não tivesse admitido...

2. na forma pronominal – HAVER-SE – como o sentido de portar-se, conduzir-se, proceder, acompanhado obrigatoriamente de um sintagma adverbial de modo:

O jogador se houve dignamente quando foi eliminado da Seleção. Houveram-se com acerto ao expulsar os invasores, uma vez que as terras eram produtivas. Eu me haverei bem diante dos convidados. 

Aqui, não cai bem o tempo presente (“eu hei-me bem”) que o consulente apresenta. 

3. na forma pronominal, com o significado de ajustar contas:

Ela vai se haver comigo quando chegar em casa. Obrigou-o a aderir à greve. Depois, ele que se houvesse com o patrão.

4. Num uso mais raro e incomum atualmente, quando significa

a) ter, possuir: Pediam que o inimigo houvesse piedade deles. Haveis consciência do que estais a fazer?

b) obter, conseguir ou herdar: Queriam saber onde ele houvera o dinheiro. Houvemos as terras de nossos pais.

c) considerar, julgar, pensar, achar: Se houveres que é tempo perdido, desiste da empreitada. Os generais houveram todos os soldados por competentes.

5. Semelhante a esta última é a expressão HAVER POR BEM ( = julgar por bem), que tem o sentido de dignar-se a ou decidir-se a (alguma coisa) por achar melhor, por entender mais conveniente:

Houve por bem libertar seus escravos antes que fosse obrigado por lei a fazê-lo. Tenham paciência que ele haverá por bem conceder-lhes o abono. 

Reportando-me ainda a duas frases mencionadas pelo consulente, lembro que os auxiliares TER e HAVER quando seguidos da preposição DE formam locuções verbais com sentidos diferentes entre si:

A) HAVER DE expressa intenção, promessa: Hei de comprar um carro 0 km. Hei de fazer a prova amanhã. Por que haveríamos de nos preocupar em agir bem se não tivéssemos algum apoio para dizer que amanhã será melhor do que hoje? O direito à diversidade haverá de tirar nossa possibilidade de exigir do outro que é diverso o mesmo que exigimos de nós próprios.

B) TER DE (ou QUE, modernamente) dá idéia de obrigatoriedade, necessidade: Lamentavelmente tenho de lhes dizer que seu crédito foi cortado. Temos que assumir o peso de decidir o que vai valer e o que não vai valer em nossa inevitável convivência humana. 

II - O verbo haver também pode ser usado como IMPESSOAL, sem flexão de número-pessoa, isto é, ele permanece na 3ª pessoa do singular seja qual for o tempo e modo verbal. Neste caso, tem as significações de: 

1. existir: A ética é o reconhecimento de que somos indivíduos porque há outros indivíduos. O pior, talvez, seja não o fato de haver concentração de renda, mas o fato de que se considere isso normal, banal, inevitável.

2. acontecer, realizar-se: Houve mais dois simpósios para discutir o tema.

3. decorrer, ter passado (tempo): No campo filosófico o debate está aceso há vários anos. Faz tempo que não a vejo, pois há dias não vem trabalhar.

Vale observar que neste caso 3 haver comuta com fazer, sendo opcional o uso da partícula QUE quando a expressão de tempo vem no início da oração:

No campo filosófico o debate está aceso faz vários anos. Há tempos [que] não a vejo, pois faz dias [que] não vem trabalhar. 

Ainda com relação aos itens 1 e 2, vale comentar a vacilação que ocorre, principalmente na oralidade, no uso das formas impessoais (sem concordância) nos tempos pretéritos e futuros. Há uma tendência dos falantes a pessoalizar o verbo haver como se faz com seus sinônimos. Assim, por exemplo, é possível ouvir mesmo de pessoas cultas “haviam gigantes, haverão dois simpósios”, dada a analogia com “existiam gigantes, acontecerão dois simpósios”. Todavia, a norma-padrão exige a não-flexão: “havia gigantes, haverá dois simpósios”. Escrever do outro modo é incorrer em críticas, certamente. 

Em termos de análise sintática, o que se dá com existir e acontecer é que a coisa existente ou acontecida é o sujeito da oração [gigantes existiam, simpósios acontecerão], ao passo que com haver a coisa existente é o objeto direto. Sendo o verbo haver impessoal neste caso, não existe sujeito, e não havendo sujeito não há por que flexionar o verbo. 

*Diretora do Instituto Euclides da Cunha e autora dos livros “Só Vírgula”, “Só Palavras Compostas” e “Língua Brasil: Crase, pronomes & curiosidades” - www.linguabrasil.com.br