Sobre a linguagem poética

  [Carlos Evandro M. Eulálio*]

 

 

Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando.

Manoel de Barros

                                                                                  

 Geralmente conceitua-se a linguagem poética com base na distinção entre prosa e poesia. A prosa é a forma espontânea de comunicação, enquanto a poesia exprime sentimentos e emoções, por meio de um texto esteticamente elaborado. O poeta Mário Faustino (1930-1962), referindo-se às fronteiras do prosaico e do poético, considera o prosaico como o discurso sobre o objeto, e o poético o discurso criador / recriador do objeto: “No poético, o artista organiza, nomeia, reconstitui, recria o universo por meio de palavras-objetos, que doa, que oferece ao leitor ou ouvinte.” No discurso prosaico, o eu lírico reflete mais o objeto; no poético, ele o traduz com palavras intraduzíveis. Daí que, para Faustino, o poético não teria de ser compreendido, mas percebido.

Sobre a percepção poética, diz o poeta e dramaturgo T. S. Eliot (1888-1965): “A poesia pode nos fazer ver o mundo sob um outro aspecto, ou nos fazer descobrir aspectos até então desconhecidos desse mundo, pode chamar nossa atenção sobre os sentimentos sem nome e mais profundos em que raramente penetramos”. Manuel Bandeira (1886-1968), seguindo esse mesmo raciocínio, assevera: “Já se disse que o poeta é o homem que vê o mundo com os olhos de criança, quer dizer: o homem que olha as coisas como se as visse pela primeira vez; que as percepciona em sua perene virgindade”.  

Viktor Chklovski (1893-1984), formalista russo, estabelece que a oposição essencial entre as leis da linguagem poética e as da prosa está na perceptividade da primeira e automação da segunda. A linguagem poética torna estranho o habitual, apresentando-o numa esfera de percepção nova, num contexto inesperado. Na prática, o estranhamento literário pode ser exemplificado nesta estrofe do poema As sem-razões do Amor de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987):  

 

Eu te amo porque te amo

Não precisas ser amante

E nem sempre sabes sê-lo 

Eu te amo porque te amo 

Amor é estado de graça 

E com amor não se paga.

 

 Nos versos “Amor é estado de graça / E com amor não se paga”, o eu lírico desautomatiza a linguagem, ao quebrar a expectativa do leitor que, possivelmente, intui a ideia de amor como aquela explícita no provérbio popular “Amor com amor se paga”. Para Chklovski, a língua da poesia é uma língua obscura, cheia de obstáculos. Chega a definir a poesia como um discurso “difícil, tortuoso, elaborado.”

No âmbito da linguística, o pensador russo Roman Jakobson (1896-1982) admite que toda obra poética se caracteriza pelo predomínio da função poética da linguagem sobre as demais funções, podendo também comparecer em outros gêneros textuais, como nos anúncios publicitários. Na literatura, a função poética da linguagem é centrada exclusivamente na mensagem e tem como principal finalidade proporcionar ao leitor uma experiência estética inusitada. Isso se verifica, quando modifica a forma convencional da linguagem, por meio de mecanismos que inovam e transformam o texto, como acontece neste poema de Manoel de Barros (1916-2014):

                        Infantil

         O menino ia no mato

            e a onça comeu ele.

            Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino

            e ele foi contar para a mãe.

            A mãe disse: mas se a onça comeu você, como é que o caminhão

            passou por dentro do seu corpo?           

            É que o caminhão só passou rateando meu corpo e eu desviei

            depressa.

            Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.

            Eu não preciso de fazer razão.

 

O poema de Manoel de Barros é uma narrativa simples, tendo como tema principal o imaginário da criança e o seu desejo de criar uma poesia. Nele, a participação do épico, em caráter acessório, corrobora o ponto de vista, segundo o qual nenhuma obra se classifica exclusivamente num único gênero literário. Daí constatar-se no texto a fusão do lírico com o épico ou narrativo. Outro aspecto composicional do texto é a polifonia de vozes. Ecoam no poema as vozes do narrador e das personagens (mãe e menino). Duas outras funções da linguagem em caráter acessório podem ser identificadas nesse poema: a função emotiva, no penúltimo verso, e a função metalinguística, quando o autor coloca em evidência o próprio texto para salientar o caráter inventivo da poesia.  

Para concluir esta sucinta reflexão sobre a linguagem poética, ressaltamos que, entre outros atributos, a linguagem de um texto poético possui também considerável valor pedagógico, pois cumpre o papel de agente do processo educativo, sendo de extrema relevância na formação escolar de nossos leitores jovens, sempre os ajudando a desenvolver a linguagem, a sensibilidade, a criatividade, o autoconhecimento e o senso crítico.  A esse respeito, convém mencionar aqui a já conhecida tarefa missionária do Pe. José de Anchieta (1534-1597) que, no século XVI, utilizou-se da poesia e do teatro como instrumentos de persuasão para os trabalhos de catequese. Valeu-se aquele educador do princípio horaciano “docere cum delectare”, pelo qual tornava agradáveis as lições de catequese, para melhor incuti-las no espírito dos nossos indígenas. Grande foi a sua atividade como poeta e como iniciador da poesia lírica brasileira com propósitos didáticos-pedagógicos.

             

 

*Carlos Evandro Martins Eulálio é professor de Português e Literatura  Brasileira, Mestre em Educação pela UFPI e membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, ocupante da cadeira 38.

 

 

REFERÊNCIAS

ANTÔNIO, Severino. A utopia da palavra: linguagem, poesia e educação: algumas travessias. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

 

BAKHTIM, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévsky. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981

 

BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p.204.

 

BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

 

BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.

 

CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In Teoria da Literatura, formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 54/55.

 

ELIOT, T. S. Ensaios Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.

 

FAUSTINO, Mário. Diálogos de Oficina. In Poesia Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 60/66.