A Rubem Fonseca.
Em várias ocasiões ela ouvira dizer que, pela mente do indivíduo que está morrendo, desfilam com vertiginosa rapidez os principais acontecimentos da sua vida e sempre achara absurda essa afirmativa, até o dia em que estava morrendo, e enquanto morria se lembrou de coisas esquecidas, do gosto da rapadura feita por sua avó nos dias de inverno, pequenos pedaços de açúcar, cheios de amendoim, e lembrou-se da vontade que sempre sentiu de dançar balé, rodando, rodando, feito uma pluma, sobre sapatilhas de cetim cor-de-rosa, e lembrou-se das histórias contadas por sua mãe antes de dormir, repletas de monstros horríveis, ogros e bruxas perversas, que só serviam para deixá-la sem sono e apavorada durante quase toda a noite, lembrou-se do suco de groselha feito somente em ocasiões especiais para as visitas que apareciam em sua casa, e no momento em que morria lembrou também daquele seu primeiro beijo, roubado, úmido e que deixou sua boca cheia de saliva, do coração batendo forte quando pensou ouvir sua mãe chegando na sala para ver se estavam se comportando, porém, angustiada, não conseguiu recordar do rosto do namorado, o nome era Pedro, mas o rosto, este ficara lá longe, distante da sua memória, e também lembrou-se do seu vestido vermelho, novo, aguardando um momento especial para ser usado, e do colar de pedras vermelhas e dos brincos combinando, e lembrou-se dos amigos insistindo que ela tinha de sair, se divertir, namorar, e quanto mais a morte a cercava mais as recordações antigas se misturavam com as recentes, da festa tão badalada para onde todos iriam depois do trabalho e ela não querendo ir de jeito nenhum, os amigos insistindo, e ela foi, sem vontade, mas foi, pegou carona no carro da Lúcia, no caminho tentou explicar que não estava muito animada, mas Lúcia não quis nem ouvir, só sabia dizer que ia ser tudo muito bom, muito divertido, elas precisavam se distrair, a festa ia ser a balada do ano, com muita dança, azaração e bebida, muita bebida, e quando a madrugada chegou todos estavam realmente animados, alegres e muito bêbados, Lucia não quis saber de pegar um táxi, disse com a língua enrolada que dava conta de tudo, que ela não precisava se preocupar, e ela não se preocupou, também sentia uma grande felicidade e leveza, seria capaz de cometer as maiores loucuras, até voar ela voaria, foi quando viu um vulto enorme vindo na sua direção, uma luz ofuscou os seus olhos, e num instante, ouviu gritos, Lúcia berrava te segura, meu Deus, e, agora, sentindo a morte muito próxima lembrou das palavras de um poema, eu devo morrer mas isso é tudo o que farei pela Morte, pois sempre se recusara a ter o coração apertado por ela, e naquele momento em que morria não ia deixar que ela tomasse conta da sua alma, pois o máximo que a Morte teria dela seria o corpo e assim decidiu pensar na vida, no beijo cheio de saliva do Pedro, nela dançando balé com suas sapatilhas cor-de-rosa, e bateu com força na janela do carro, bam! bam! bam! estou pensando na minha mãe, na pluma que eu poderia ter sido, no gosto doce da groselha, bam! bam! bam!, e nesse momento alguém com urgência e desespero chutou a porta tentando abri-la, e ela bateu novamente na janela, bam! bam! gritando que estava viva, bam! bam! que queria ser feliz, bam! bam! que perdoava todo mundo, enquanto sua mente percorria os momentos distantes do seu passado, com raiva e impotente, sentiu, mais do que viu, alguém abrindo a porta, e ela se esforçou em demonstrar que respirava, que estava li, não só seu corpo, mas também sua alma, lembrou-se da sua avó dizendo, menina não seja soberba que Deus castiga, mas ela pensou, Ele se esqueceu de mim, portanto não vou ficar aqui morta, esperando que a Morte venha me buscar, mexeu-se, e num esforço acompanhado de dor e sangue sentiu o ar da noite atingi-la e um profundo alívio tomou conta da sua mente, e ela escapou da Morte. As pessoas, nervosas e aos gritos, corriam para abrir a outra porta. Ao ser colocada no chão, ela procurou Lúcia, mas a única coisa que viu foram estrelas no céu.