Elmar Carvalho
 
 

Vários homens tomavam cerveja no cabaré Munguba City, localizado na margem direita do Igaraçu, ouvindo Waldick Soriano e Roberto Muller, entre outros cantores de igual gênero musical, através de uma radiola, que tocava velhos discos de vinil, quando entrou no recinto uma prostituta conhecida como Bandinha. A alcunha se devia ao fato de ela, quando adolescente, haver sofrido um acidente com um fogareiro de álcool, no qual teve queimada a metade de sua genitália, que ficou sem pelo na banda afetada. A mulher sorriu aos cumprimentos de alguns boêmios, e se dirigiu ao balcão desse misto de bar e pequena mercearia, onde comprou uma garrafa de querosene.
 
Pouco depois correu o boato de que uma rapariga do baixo meretrício da Munguba havia derramado uma garrafa de querosene sobre seu corpo e vestes, e se ateado fogo. Os comentários diziam que ela se tocara fogo em seu quartinho, onde recebia os homens, para o sexo remunerado. Depois, abrira a porta da alcova, em desespero, e saíra a correr, incendiada, pelo longo corredor do casarão, apelidado de QG, a pedir socorro em gritos lancinantes. Houve mesmo quem dissesse haver presenciado a corrida desesperada da tocha humana.
 
Quando Lúcia, era esse o nome de Bandinha, voltou a ter consciência de si foi como se houvesse saído de um terrível e trágico pesadelo. Havia momentos em que duvidava sobre se o pesadelo não fora real, e ela não tivesse mesmo ateado fogo em si mesma. Seguiu sua vida normalmente, a receber os homens, a sentir os tédios dolorosos das tardes vazias, melancólicas, em que as lembranças amargas lhe pungiam a alma, jogando-a em profunda depressão. Doíam-lhe os traumas e as recordações, sobretudo do dia em que seu pai, na Ilha das Canárias, quando ela ainda era mocinha, a expulsou de casa, dizendo que ela era um “dedo cortado”. Seu namorado, prometendo que iria casar-se com ela, a desvirginara e engravidara, e, após, fora embora para sempre, abandonando-a como um brinquedo quebrado. Diante da falta de perspectivas em Ilha das Canárias, lugarejo preconceituoso, foi ser mulher da vida em Parnaíba.
 
Envelheceu. Seus cabelos começaram a ficar brancos e ralos. A pele se lhe enrugou precocemente. Os dentes foram sendo arrancados um a um, até precisar de uma dentadura postiça, que lhe maltratava a gengiva. Já não era procurada pelos homens, como se fosse uma botina rota, rasgada e frouxa, jogada a um canto, até ser mandada para o monturo, de vez. Já não era procurada para o coito pago, mas vez ou outra algum bêbado a procurava, para lhe enganar com o “seixo” ou calote, após saciado. Sequer se rebelava contra esses logros, que lhe serviam ao menos para lhe afastar da rotina de indesejada. Não mais sentia desejos ou afeto.
 
Passou a ser empregada do prostíbulo, a varrer e lavar o casarão, a limpar as sujeiras das latrinas, a recolher o lixo e dejetos das alcovas das putas novas. Por vezes lhe vinha a vontade de se matar, de por um ponto final nessa tristeza, nesse tédio, nessa decadência. Mas quando lhe vinha esse desejo suicida, a lembrança do pesadelo lhe voltava com cruel intensidade, e Bandinha parecia sentir as dores do fogo a lhe queimar as magras carnes; parecia sentir o cheiro chamuscado de si mesma.
 
Era humilhada pelas raparigas novas e pelos bêbados, que debochavam de seu corpo torto, de sua boca murcha, de seus membros finos, esquálidos, de seus cabelos ralos e brancos. Depois, em rápida sucessão, já não servia nem para limpar as sujeiras das prostitutas. Passou a mendigar pelas ruas da cidade, principalmente pelas ruas da Munguba e da Vala da Quarenta. Passados alguns anos, sequer aguentava a vida de pedinte, e foi implorar pousada no Abrigo São José. Teve sorte; foi aceita. Teve mais sorte ainda, pois logo depois morreu de um infarto fulminante, enquanto dormia. Não sentiu dores e nem incomodou ninguém.
 
Quando Lúcia voltou a si, estava sozinha, num lugar que não se parecia com nada que já tivesse visto até então. Não saberia descrevê-lo. Como se surgidos do nada, apareceram uns homens e umas mulheres que se aproximaram dela. Soube, por esses seres, que não tivera um pesadelo, mas efetivamente morrera; que a vida que vivera após o suicídio não fora realmente vida, mas apenas o simulacro de uma vida, a vida que deveria viver e não vivera. As pessoas, os prédios, as coisas e a paisagem eram apenas a sombra irreal do que ela teria que viver na terra. Vivera sozinha, numa outra dimensão, tudo fruto das lembranças e projeções oriundas de uma parte misteriosa de sua mente. Intuiu, então, que ninguém tem o poder de suicidar-se.
 
(*) Não se trata de uma ficção espírita nem científica. Trata-se apenas de um conto. Cristo disse: “Na casa de meu pai há muitas moradas”. A física moderna especula sobre a possibilidade de existirem outras dimensões e universo(s) paralelo(s). Imaginei todas as hipóteses. Deixo que o leitor adapte a minha narrativa ao que mais lhe convier.